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Características do Direito Civil japonês

Da Redação

segunda-feira, 23 de junho de 2008

Atualizado às 10:42


Japão

No momento em que estão em evidência as comemorações do centenário da imigração japonesa para o Brasil, trazemos aos leitores um texto da obra "O Direito e a Vida dos Direitos" de Vicente Ráo, anotada e atualizada por Ovídio Rocha Barros Sandoval, que trata das singulares características do Direito Civil japonês. Leia "O Direito Civil do Japão. A sua ocidentalização".

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O Direito Civil do Japão. A sua ocidentalização

Sobre o Direito Civil japonês, pelas singulares características que apresenta, são importantes as seguintes considerações.

Até a era de Meiji, iniciada em 1868, vigia no Japão, um código de honra, puramente costumeiro, que determinava todos os comportamentos e condutas. "Desenvolveu-se todo um conjunto de regras que dizem respeito às conveniências tanto ou mais que a moral, e que regulam em todas as ocasiões da vida a conduta dos indivíduos nas suas relações". Essas regras de comportamento são chamadas "giri": "há o "giri" do pai e do filho, e o do marido e da mulher, o do tio e do sobrinho, o dos irmãos entre si, e, fora da família, o do proprietário e do rendeiro, do credor e do devedor, do comerciante e do cliente, do patrão e do empregado, do empregado mais antigo e do menos antigo, etc." (René David, ob.cit., n. 493, p. 488). Para muitos o "giri" substitui o Direito e, até mesmo, a moral. Sua observância é espontânea, menos por corresponder a uma certa norma moral ou de obrigação estrita, e sim por incorrer na censura da sociedade "quem com ele não se conformar", pois "seria uma vergonha, uma falta de caráter para um japonês, não respeitar um dos "giris" nos quais se encontra inserido". Isto porque, "um código de honra, puramente costumeiro, determina todos os comportamentos". Ele "tornou inútil e mesmo odiosa, até uma época recente, a intervenção do direito" (idem, p. 489).

A ocidentalização do Direito japonês, iniciada na era de Meiji, foi decidida para terminar com os tratados de comércio desiguais impostos por potências ocidentais (Estados Unidos da América, Reino Unido, Rússia, França, Bélgica e Holanda) ao Japão, em 1858, e "que este considerava como uma humilhação nacional" (ibidem).47

Tem início a tradução, em especial, do Código Civil Francês, com todas as dificuldades daí advindas, pois não havia nenhum jurista japonês e existia a "necessidade de encontrar termos apropriados para exprimir noções tão elementares como a de direito subjetivo (kenri) ou de obrigação jurídica (ginei)", totalmente estranhas ao pensamento japonês. 48

O governo japonês decidiu, então, contratar alguns juristas estrangeiros pra ensinarem o Direito do Ocidente e assessorar o próprio Governo em temas legislativos. Entre eles, destaca, no âmbito do Direito Civil, o francês Gustave Emíle Boissonade de Fontarabie, que firmou um contrato de três anos com o Ministério da Justiça japonês, em Paris, no dia 24.6.1873. O jurista francês cumpriu sua tarefa, inicialmente com a promulgação, por lei especial, dos primeiros códigos japoneses modernos - penal e do processo penal - que entraram em vigor em 1º.1.1882. No Código Penal, por exemplo, veio a consagração do principio da legalidade penal ("nulla poena sine lege"), bem como o da irretroatividade da lei penal desfavorável. Tiveram vida curta: o Código de Processo Penal esteve em vigência até o ano de 1890, enquanto o penal foi revogado pelo Código que entrou em vigor em 1907.49

Em março de 1879, Boissonade deu início à elaboração de um projeto de Código Civil. O projeto foi elaborado, tendo por inspiração, não só o modelo francês, como também idéias próprias daquele jurista. Como não conhecia bem os costumes japoneses e o idioma local, preferiu, em boa hora, que o Livro sobre as pessoas e aquele referente às sucessões, fossem elaborados pelos juristas japoneses Shiro Isobe e Tashikazu Kumano, ficando Boissonade livre para se dedicar, pessoalmente, aos demais livros do projetado Código.

Ao cabo de dez anos, em abril de 1889, apresentou o seu projeto, com a primeira parte concluída, que foi promulgado por Lei imperial n. 28, de 27.3.1890. Quando o grupo japonês terminou, em outubro do mesmo ano, o Livro I sobre as pessoas e a parte correspondente ao Direito das Sucessões do Livro III, foram reunidos os cinco livros em um só Código Civil, cuja entrada em vigor foi fixada para 1º.1.1893.

Instituiu-se uma "vacatio legis" de três anos com a finalidade de que os juristas se familiarizassem com o novo Código Civi. Nesse perído, teve início uma forte controvérsia que impediu o Código de Boissonade entrar em vigor. Destaca-se, no campo da oposição de entrada em vigor do Código Civil um famoso Manifesto assinado por onze juristas japoneses de formação jurídica anglo-saxônica.50

Criou-se um Conselho para a revisão do Código Civil de 1890 que, ao invés de revisar, preparou um novo projeto que, em 1896, foi aprovado pela Dieta Imperial, com ligeiras modificações, sendo promulgado pela Lei 9, de 21.6.1898, com entrada em vigor em 16.7.1898.

O Código Civil de 1898 passava a contar com uma Parte Geral e a grande vantagem, sobre o Código anterior, estava o fato de haver sido escrito no idioma japonês. De outra parte, era clara a influência exercida pelo projeto do Código Civil alemão. Todavia não se pode negar tratar-se de uma obra eclética, ao acolher a influência de três escolas européias (inglesa, francesa e alemã). 51

O Código Civil foi complementado pelo Código de Comércio de 1899.

Importantes modificações foram introduzidas no texto do Código Civil, depois de 1945, com a democratização do país, finda a Segunda Grande Guerra. Modificações essas de inspiração americana.52 Nessa época, em 1945, o imperador Hirohito veio a declarar que a dinastia imperial não tinha origem divina, quebrando, assim, uma tradição que durava há dois milênios e meio.

As mais importantes modificações do Código Civil se deram no Direito de Família e no Direito das Sucessões. 53

Reformas importantes ocorreram, ainda, por força da Lei 40, de 29.3.1962, que incorporou, entre outras alterações, a presunção de comoriência; a autorização ao Juiz de Família de dispor, no caso de inexistência de herdeiros, a favor de determinadas pessoas que conviveram ou assistiram ao "de cujus". A Lei 51, de 17.5.1980 melhorou a condição do cônjuge viúvo e estendeu o direito de representação aos netos do falecido. A Lei 101, de 29.9.1987 consagrou o instituto de adoção plena, com extinção dos vínculos de parentesco entre o adotado e a sua família anterior.

Substancial e importante reforma do Código Civil japonês aconteceu, recentemente, com a Lei 149, de 8.12.1999, que entrou em vigor em 1.4.2000. Modificou, em profundidade,o capítulo correspondente à capacidade jurídica; reformou a parte referente à tutela, permitindo, por exemplo, que o cargo de tutor seja exercido por uma pessoa jurídica, como ocorre na Espanha. Regulamenta melhor a curatela e traz um capítulo específico sobre o instituto da assistência, a ser constituída, por resolução judicial. Permite ao surdo-mudo outorgar testamento aberto ou cerrado, assistido por um intérprete, bem como modifica os artigos que tratam das formas testamentárias especiais, para estendê-las a pessoas de capacidade limitada.

Foi suprimido o multisecular conceito de "incapacitado", por considerá-lo desafortunado, em virtude de suas conotações negativas. Por exemplo, a tutela deixou de ser exercida sobre o "pupilo" e o "incapacitado", mas sim sobre o menor ou o "maior de idade", que dela necessite (art. 8º.). O tutor do menor deve ser único, enquanto para o maior é possível a nomeação de um co-tutor. Para proteger a pessoa de capacidade limitada, é instituída, ao lado da tutela e da curatela, a figura jurídica da "assistência", sendo esta, sem dúvida nenhuma, a grande reforma de 1999. Trata-se de uma instituição de proteção dedicada àquelas pessoas que, sem necessidade de tutor - por não estarem privadas, permanentemente, da capacidade de entendimento - nem de curador - por não possuírem uma capacidade de entendimento muito diminuída, em virtude de perturbação mental - estão sujeitas ao cuidado e atenção de outra pessoa que, a critério do Juiz de Família, necessitam de um assistente, especialmente para a prática de negócios jurídicos. O Japão apresenta um sério problema referente ao envelhecimento, pois abriga uma população superior a doze milhões de japoneses com idade superior a 65 anos (Rafael Domingo, ob. Cit., p. 45). E muitos deles não possuem família, em virtude, especialmente, dos mortos da Segunda Grande Guerra. Trata-se de um importante instituto jurídico para o nosso século XXI, que reclama um tratamento honrado e cuidadoso à velhice. Semelhante disposição legal vamos encontrar no vigente Código Civil brasileiro de 2002, em seu art. 1780: "A requerimento do enfermo ou portador de deficiência física, ou, na impossibilidade de fazê-lo, de qualquer das pessoas a que se refere o art. 1768, dar-se-lhe-á curador para cuidar de todos ou alguns de seus negócios ou bens".

Verifica-se, assim, que um país oriental, com fundas raízes no sistema chinês a abonar seculares regras costumeiras, acabou por ocidentalizar o seu Direito, vindo a incorporar-se ao sistema ocidental filiado ao Direito Romano.

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47 "Meiji foi o nome adotado pelo Imperador Mutsuhito (1852-1912), que substituiu o regime feudal por uma monarquia constitucional. A denominada Época de Meiji vai de 1868 a 1912, quando se produziu uma rápida modernização do Japão, graças, em parte, à sua abertura para o Ocidente.

48 A dificuldade aumentava com o fato de não existir um dicionário francês - japonês.

49 O Código de Processo Penal de 1852 foi substituído, com ligeiras modificações, por outro do ano de 1890 que, por sua vez, foi derrogado pelo Código de 1922, de inspiração alemã. Depois da Constituição japonesa de 1947, foi promulgado um novo Código de Processo Penal (Lei 131, de 10.7.1948), em conformidade com os novos princípios constitucionais, que entrou em vigor em 1º. 1.1949.

O Código Penal promulgado pela Lei 45, de 24.7.1907, continua em vigor, sendo que sua última reforma se deu pela Lei 91, de 12.5.1995, sendo inspirado nas idéias de Franz Von Lizt, jurista alemão (1851-1919).

50 Esse Manifesto centrava sua crítica, entre outros, nos seguintes pontos: a) o Código havia desprezado os antigos costumes referentes à organização familiar japonesa; b) que se inspirava em princípios do Cristianismo - que não era a religião do país - defensores da igualdade de todos os seres humanos, independentemente, da sua posição social; c) dava mais importância à disciplina concernente aos bens, que às pessoas; d) admitia um Direito Natural anterior ao Direito Positivo (Rafael Domingo, "Código Civil Japonês", Estudo Preliminar, Ed. Marcial Pons, Madrid, 2000, p. 27).

51 A redação do novo Código Civil levou em conta mais de trinta Códigos, inclusive o espanhol de 1889. Assim sendo, em alguns capítulos foram adotadas regras do Código Civil francês, em outros, os princípios do direito anglo-saxão, bem como o do Código das Obrigações da Suíça e de distintas repúblicas sul-americanas (Chile, Uruguai, Argentina, Venezuela e Colombia).

52 Em fevereiro de 1946, o general MacArthur ordenou, "manu militari" , fosse promulgada uma nova Constituição democrática, em substituição à de 1889, contendo os princípios da denominada, "doutrina MacArthur: a)soberania popular; b) renúncia do direito à guerra; c) supressão da nobreza e dos privilégios". A Constituição foi promulgada em 3.11.1946 e entrou em vigor em 3.5.1947.

53 O matrimônio passou a ser considerado um convênio em igualdade de condições entre os cônjuges. Assim foi suprimida a autorização paterna como requisito de validade do consentimento matrimonial do marido menor de 30 anos e da mulher menor de 25 anos; protegeu a separação de bens entre os cônjuges que assim o desejaram (art. 762), bem como a liberdade para a escolha dos apelidos de família (art.750). No campo do Direito das Sucessões foram suprimidos os privilégios sucessórios do primogênito, excetuada a propriedade dos documentos genealógicos e instrumentos de ritos funerários e sepulturas (art. 897). Conserva, porém, a distinção entre filho legítimo e ilegítimo e outorga a este último a metade dos bens correspondentes àquele (art. 900).

Em tema de divórcio, foi mantido o divórcio consensual e eliminou as causas do divórcio judicial, que atentavam contra o princípio da igualdade entre os sexos.

A reforma do Livro IV do Código Civil sobre o Direito de Família foi completada pelas Leis 152, de 6.12.47, que regula os conflitos familiares e a Lei 224, de 22.12.47 sobre o registro civil familiar. A primeira aprovou, junto dos divórcios convencional e judicial, dois novos tipos: o divórcio por ato de conciliação na presença de um juiz de família e com mediador entre os cônjuges e o divórcio por resolução do tribunal de família, com o poder de impor um convênio regulador para a quebra do vínculo matrimonial. Esses dois processos, em princípio, poderiam constituir um freio ao divórcio livre "sine causa" do antigo Código (art. 808 do CC de 1898), que escondia, em verdade, o repúdio da mulher, só formalmente consentido por ela, mas tal não aconteceu. Para cem casos de divórcio, noventa seguem sendo convencionais, pela razão de que o povo japonês ama a justiça, mas não os litígios. É a razão pela qual há um número escasso de juízes, fiscais e advogados no Japão (Rafael Domingo, ob. Cit., PP 42 e 43).

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  • Conheça a obra

"O Direito e a Vida dos Direitos" (Editora RT, 1.040 p., Vol. Único - 6ª Ed.), de Vicente Ráo, anotada e atualizada por Ovídio Rocha Barros Sandoval.

Publicado originalmente em 1952, este clássico da literatura jurídica nacional retorna, nesta 6ª edição, atualizado com o novo Código Civil e com as demais modificações legislativas incidentes.

A primeira parte da obra é dedicada às noções gerais da Ciência do Direito, sua origem, essência e finalidade social. Analisa-se, em seguida, temas de direito positivo sob a ótica dos diversos sistemas existentes no mundo.

Nas questões de direito objetivo, merecem especial atenção os conflitos de normas jurídicas no tempo e no espaço. Por fim, é abordada a Teoria Geral do Direito Subjetivo: seus fundamentos nas perspectivas do sujeito e do objeto e, ainda, a correspondente tutela prevista no ordenamento brasileiro. Para facilitar o visualização pelo leitor, os novos textos redigidos pelo atualizador apresentam-se em padrão gráfico do tipo itálico e as notas de rodapé, marcadas com um asterisco. Nas palavras da professora Esther de Figueiredo Ferraz, "é o livro da maturidade, desses que só podem escrever os homens chegados ao altiplano da existência intelectual".

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