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Advogado Luis Roberto Barroso é entrevistado por Cézar Britto e Luiz César Machado de Macedo

Em sabatina virtual organizada pela jornalista Claudia Zardo, Luís Roberto Barroso é entrevistado pelo presidente da OAB Federal, Cézar Britto, e por Luiz César Machado de Macedo, ex-Procurador Municipal em Uberlândia, professor universitário, mestre e doutorando em Filosofia do Direito e do Estado.

Da Redação

terça-feira, 10 de março de 2009

Atualizado às 08:45


Entrevista

Advogado Luis Roberto Barroso é entrevistado por Cézar Britto e Luiz César Machado de Macedo

Em sabatina virtual organizada pela jornalista Claudia Zardo, Luís Roberto Barroso, do escritório Luís Roberto Barroso & Associados, é entrevistado pelo presidente da OAB Federal, Cézar Britto, e por Luiz César Machado de Macedo, ex-Procurador Municipal em Uberlândia, professor universitário, mestre e doutorando em Filosofia do Direito e do Estado.

  • Confira abaixo a entrevista na íntegra.

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Cézar Britto - O Sr. é defensor e apaixonado pela Constituição, como são todos os constitucionalistas. Até aí nenhuma novidade, pois ela é um instrumento de defesa do Estado Democrático de Direito. Mas se o "Centrão" tivesse sido vencedor dos debates e ela fosse conservadora, o senhor ainda falaria na imodificabilidade dos seus princípios?

Luís Roberto Barroso - Meu estimado Presidente, é um prazer e uma honra a sua presença aqui. Um constitucionalista, de fato, deve defender a Constituição, mas não qualquer Constituição. É preciso que ela seja democrática. Para que uma Constituição seja democrática, ela deve ser a expressão adequada da soberania popular, da vontade da maioria, manifestada em um momento cívico especial. Além da observância desse procedimento adequado, uma Constituição democrática deve ter conteúdos mínimos essenciais: limitar o poder, proteger e promover os direitos fundamentais do povo, instituir sufrágio universal (todos os que forem maiores e capazes podem participar politicamente) e conter regras razoáveis sobre a alternância do poder. Democrática é a Constituição que fomenta uma sociedade de pessoas livres e iguais. Uma Constituição que siga esta receita é de toda a sociedade e não pode ser apropriada por um único segmento. A Constituição ideal permite que um partido conservador governe de acordo com o seu programa e que um partido progressista governe de acordo com o seu. Ambos, no entanto, têm que respeitar os direitos fundamentais e as regras do jogo democrático.

Cézar Britto - O Sr. defende ou, em sua opinião, uma nova Assembleia Constituinte pode ser tomada como uma espécie de golpe?

Luís Roberto Barroso - Uma Assembléia Constituinte, como bem sugere a pergunta, não é um produto que esteja à disposição em uma prateleira de possibilidades políticas, à disposição dos governantes. Ela constitui o mais relevante fato político na vida do Estado, porque se destina a criá-lo ou reconstruí-lo. O poder constituinte originário é uma energia que irrompe acima das vontades individuais, é um poder coletivo, que aflora como uma força natural e incontida. Só existe poder constituinte originário - e, portanto, só existe Assembléia Constituinte legítima - quando se está diante daquilo que os constitucionalistas denominam de momento constitucional, uma grande mobilização cívica em torno de uma nova idéia de Estado, de governo e de sociedade. No Brasil recente, tivemos isso ao longo da década de 80 do século passado, no processo de mobilização popular que antecedeu a convocação da Assembléia Constituinte que elaborou a Constituição de 1988. O ponto culminante desse processo foi a campanha pelas Diretas Já, complementado pela derrota do regime militar no Colégio Eleitoral, em 1985. Poder Constituinte é isso: povo na rua, reivindicando um novo tempo, novas bases para o poder, um novo código de relação entre governo e sociedade. Por isso mesmo, Poder Constituinte não se convoca: ele chega quando é sua hora. O ato formal de "convocação" - como foi a Emenda Constitucional nº 26, de 1986, é um ato de reconhecimento de que a soberania popular deseja se manifestar. Se este quadro que eu descrevi não estiver presente, não se pode legitimamente falar em Assembléia Constituinte. Agora: a modificação da Constituição, no quadro da legalidade vigente, é sempre possível. No Brasil de hoje, não há nada de relevante, da Reforma Política à Reforma Tributária, que não possa ser feito por emenda à Constituição. Por qual razão, então, se pensaria em fazer uma nova Constituição, desprezando o capital político que ela representa em 20 anos de redemocratização estável e bem sucedida?

Cézar Britto - Em seu entendimento, a derrota do parlamentarismo, após consulta popular constitucional, tornou o presidencialismo cláusula imodificável?

Luís Roberto Barroso - Penso que não. Na minha Proposta de Reforma Política (publicada na Revista de Direito do Estado nº 3, de 2006, e disponível no sítio institutoideias.org.br) eu defendo o modelo semi-presidencialista, tal como praticado na França e em Portugal. O presidente, eleito diretamente, com competências importantes, mas limitadas, que o preservassem da rotina de governo, do varejo político. O dia a dia da administração ficaria reservado ao primeiro-ministro, investido por indicação do presidente, com chancela parlamentar. Porém, tendo em vista o plebiscito realizado em 1993, que ratificou a fórmula presidencialista plena, talvez uma idéia própria fosse levar eventual emenda como essa que proponho à ratificação popular, mediante referendo. Aí, uma vez aprovada, não haveria questionamento possível quanto à sua legitimidade.

Cézar Britto - A permissão de mandatos eleitorais, sem a barreira da proibição da reeleição, é constitucionalmente possível?

Luís Roberto Barroso - Acho que pode até ser possível, mas é indesejável. Tendo em conta a tradição latino-americana, talvez se possa até construir o argumento da inconstitucionalidade. A interpretação constitucional é uma atividade jurídica, mas ela não é imune à história, à filosofia política e à Ética. Se há risco democrático envolvido, o intérprete não pode desconsiderá-lo. Não há ditadura boa. Nem a dos nossos amigos ou de quem eventualmente defenda as nossas próprias idéias. Nessa matéria de reeleição, há um bom exemplo. Nos Estados Unidos não havia uma limitação expressa à reeleição, mas havia algo como uma regra implícita de que uma reeleição era o máximo admitido. No entanto, no entre-guerras, Franklin Roosevelt exerceu um total de quatro mandatos (uma eleição e três reeleições). Depois disso, foi aprovada uma emenda à Constituição americana limitando a reeleição a um único mandato sucessivo. Eu, pessoalmente, não tenho muito gosto sequer por uma reeleição. Só tenho dúvida se, uma vez consolidada esta fórmula no Brasil, após as reeleições de Fernando Henrique e Lula, se se deve voltar atrás. Às vezes, pior do que não se ter o modelo ideal é passar a vida sem deixar que nenhuma fórmula se consolide.

Cézar Britto - Qual é a posição do Sr. diante do mais recente conflito entre os Magistrados de Primeira Instância, além dos líderes de outras categorias, e parte dos integrantes da Corte Superior?

Luís Roberto Barroso - Minha posição é a seguinte: o sistema punitivo no Brasil - aquele que começa no inquérito policial, passa pela denúncia do Ministério Público, o julgamento pelo Judiciário, a execução penal e o sistema penitenciário - está desarrumado. Está desarrumado do ponto de vista doutrinário, normativo e filosófico. E isso se manifesta na jurisprudência, que passa sinais contraditórios para a sociedade. A sociedade brasileira não está satisfeita com esse sistema. Não se trata de se ter uma posição punitiva ou garantista, mas de se desenvolverem bases comuns de argumentação, à luz de princípios e fins adequadamente debatidos e definidos. Quando pessoas esclarecidas e bem-intencionadas divergem na profundidade verificada nesses episódios invocados pelo nosso presidente da OAB, é sinal de que falta um denominador comum que propicie a interlocução construtiva. Conflito é falta de interlocução. Pois bem: precisamos repensar e reconstruir esse sistema, levando ao debate público a definição de um modelo de direito penal, de processo penal e de execução penal que possa servir adequadamente ao Brasil.

Luiz César Machado de Macedo - As decisões recentes do STF sobre direitos e preceitos fundamentais têm causado uma reação sobre o chamado "ativismo judicial" daquela Corte. Em sua opinião, a atuação do STF trata-se de desvio ou do cumprimento das funções previstas de defensor da Constituição?

Luís Roberto Barroso - Durante toda a história do Brasil, nós vivemos exatamente o problema oposto. A Constituição não era para valer e suas normas não tinham qualquer efetividade. Por exemplo: a Constituição Imperial de 1824 falava na igualdade de todos perante a lei, em um tempo em que o voto era censitário, a nobreza tinha privilégios e vigorava o regime escravocrata. A Constituição de 1969, outorgada pelos Ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar assegurava a todos os trabalhadores, pasme, "colônias de férias e clínicas de repouso". O que havia de comum entre essas duas Constituições, distantes 150 anos uma da outra? A falta de seriedade em relação ao que afirmavam, a insinceridade normativa. Ambas prometiam o que não pretendiam cumprir.

Pois bem: em meados da década de 80, eu participei de um movimento, identificado por alguns como "doutrina brasileira da efetividade", cujo principal propósito era o de fazer com que a Constituição fosse "para valer", isto é, transformar as proclamações constitucionais em realidade prática. E penso que o debate que se trava hoje, acerca dos limites da atuação judicial, no qual alguns acham que o Judiciário foi longe demais, é, de certa forma, a vitória dos ideais da minha geração em matéria de efetividade constitucional. É um consolo, porque nós perdemos em tantas outras áreas. Tínhamos um projeto mais ambicioso no plano social, um país mais igualitário, que não se realizou. Onde nós sonhamos solidariedade, venceu a competição; onde nós sonhamos humanismo, venceu o consumo. Mas, pelo menos, conquistamos um Estado constitucional e democrático.

No geral, acho que o Supremo Tribunal Federal tem se saído bem. Acho que o modelo constitucional brasileiro "judicializou" amplamente a vida social. É uma Constituição abrangente, ambiciosa. E trazer uma matéria para a Constituição é, de certa forma, tirá-la da política e trazê-la para o Direito. Porque se está na Constituição, normalmente poderá dar ensejo a uma pretensão judicial. E acho que as decisões ativistas do STF, que não têm sido tantas assim, vieram ao encontro de demandas sociais não atendidas pelo Legislativo. Foi o caso da fidelidade partidária e do nepotismo, para citar dois exemplos. De modo que eu não vejo desvio. Agora, o STF, naturalmente, não pode presumir demais de si mesmo - como ninguém deve, aliás, nessa vida - e nas matérias em relação às quais tenha havido manifestação válida e inequívoca do Congresso, a Corte deve ser deferente para com ela. Em uma democracia, tanto quanto possível, a última palavra deve ser a de quem tem votos.

Luiz César Machado de Macedo - Como garantir a justiciabilidade dos Direitos Humanos Sociais, dada a atual estrutura jurídico-positiva do Direito Constitucional brasileiro? Seriam necessárias mudanças normativas, para além da reformulação teórica-hermenêutica no estudo do Direito Constitucional?

Luís Roberto Barroso - A questão da concretização dos Direitos Sociais é complexa em todo o mundo e creio que, de certa forma, estamos na frente nessa matéria. De longa data, por exemplo, o STF decidiu que o Poder Público deveria fornecer medicação contra AIDS gratuitamente para pessoas carentes. Um acórdão célebre do Ministro Celso de Mello, um juiz notável, hoje decano do Tribunal. Nos Estados, houve, ao longo da década de 90, decisões importantíssimas em matéria de educação fundamental, o antigo ensino primário, determinando ao Poder Público que matriculasse crianças e "se virasse" para atender o mandamento constitucional que dizia que a educação fundamental era obrigatória. Hoje, em relação ao fornecimento de medicamentos em geral, a intervenção judicial foi tão ampla que já se discute a necessidade de ela refluir ou, pelo menos, de seguir determinados parâmetros que evitem o desequilíbrio do sistema e as injustiças daí advindas. De modo que não acho que tenhamos nem déficit normativo nem de hermenêutica ou de interpretação constitucional. O que nós temos, mesmo, como todo o mundo, é déficit de recursos e, portanto, vivemos as escolhas moralmente complexas de como alocá-los.

Luiz César Machado de Macedo - O momento não é propício para darmos ao STF a configuração de uma verdadeira Corte Constitucional? Quais seriam as dificuldades remanescentes e como poderíamos superá-las?

Luís Roberto Barroso - Acho que o STF já é uma Corte Constitucional, no sentido de que funciona como o intérprete final da Constituição. O que compromete em alguma medida o desempenho pleno desse papel é o conjunto vasto - e indesejável - de competências não constitucionais que a Constituição lhe confere. Isso inclui competências demasiadas em matéria de ações penais por prerrogativa de função, além de mandados de segurança contra muitos órgãos e autoridades, extradição, enfim, temas que não deveria estar concentrados na Corte. Mas no Brasil há uma certa visão de que competências significam mais poder e, portanto, nem sempre é fácil redistribuí-las.

Sobre o entrevistado

Luís Roberto Barroso é parte integrante de uma nova geração de doutrinadores que prometem revigorar o Direito Constitucional nacional com novas ideias e métodos de interpretações. Dentre as características que marcam sua personalidade está o interesse pela defesa intelectual de casos polêmicos. Além de diversos livros e artigos publicados no Brasil e no exterior, Barroso é conhecido por ser especialista em Engenharia do Estado e possui grande habilidade na construção de argumentações jurídicas. É formado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e advoga desde 1981. Entre outros, cursou Master of Laws (LL.M) na Universidade de Yale, EUA; é doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); professor na mesma universidade e na Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ).

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