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Juiz Federal Aluisio Mendes fala em entrevista à revista Habeas Data sobre projeto que cria uma nova lei das ações coletivas e sobre acesso universal à Justiça

O processo judicial é historicamente individualista. As regras que governam as ações nos tribunais pelo mundo afora tratam muito mais das disputas entre fulano e beltrano do que das questões que interessam à coletividade. Para o juiz Federal, pós-doutor em Direito pela Universidade de Regensburg, Alemanha, e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e da Universidade Estácio de Sá, Aluisio Gonçalves de Castro Mendes, isso tem que mudar, considerando que os vínculos e as interações da sociedade (que o Direito existe para regular) já mudaram, e muito, desde que os primeiros institutos legais foram criados pelos romanos na era pré-cristã.

Da Redação

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Atualizado às 08:51


Ações coletivas

Juiz Federal Aluisio Mendes fala em entrevista à revista Habeas Data sobre projeto que cria uma nova lei das ações coletivas e sobre acesso universal à Justiça

O processo judicial é historicamente individualista. As regras que governam as ações nos tribunais pelo mundo afora tratam muito mais das disputas entre fulano e beltrano do que das questões que interessam à coletividade. Para o juiz Federal, pós-doutor em Direito pela Universidade de Regensburg, Alemanha, e professor da UERJ e da Universidade Estácio de Sá, Aluisio Gonçalves de Castro Mendes, isso tem que mudar, considerando que os vínculos e as interações da sociedade já mudaram, e muito, desde que os primeiros institutos legais foram criados pelos romanos na era pré-cristã.

Em entrevista ao Habeas Data, Aluisio Mendes fala sobre o trabalho da comissão especial, da qual ele faz parte, que foi criada com o objetivo de estabelecer uma nova lei das ações coletivas, mais afinada com a realidade atual e, principalmente, que unifique em um só texto as normas que cuidam de direitos de parcelas ou de toda a comunidade brasileira, como o CDC (clique aqui), o ECA (clique aqui) e o Estatuto do Idoso (clique aqui). Ou, em linguagem mais técnica, a comissão instituída pelo ministro da Justiça, Tarso Genro, em 2008, visa ao "aprimoramento e à modernização das leis que tratam de direitos coletivos, difusos e meta-individuais homogêneos".

As atividades seguem em ritmo acelerado. O trabalho já tomou corpo como PL 5.139/09 (clique aqui) e passa pelo crivo da Câmara dos Deputados. No dia 18 de junho, a CCJ realizou uma audiência para discutir a proposta. Entre os expositores, esteve o juiz Federal Aluisio Gonçalves de Castro Mendes. Ele acredita que, nesse passo, a lei estará aprovada ainda este ano.

A intenção é grandiosa: além de revolucionar os preceitos do processo brasileiro, o plano traçado aqui deverá servir de modelo para outros países ibero-americanos elaborarem seus códigos de processos coletivos. Afinal, a ideia de construir uma legislação processual unificada no país surgiu em um encontro de juristas brasileiros, portugueses, espanhois e de outras nações da América Latina, realizado em Roma, há sete anos.

Para garantir uma visão bastante abrangente dos temas discutidos, a comissão formalizada por portaria do Ministério da Justiça é composta por estudiosos da matéria, e também por representantes de diversas instituições, como o MP, a Defensoria Pública, a Casa Civil da Presidência, a AGU, a OAB, o Ministério da Fazenda e, claro, o próprio Ministério da Justiça.

A presidência do grupo, composto de 24 membros, está a cargo do atual Secretário da Reforma do Judiciário, Rogério Favreto. O professor do curso de pós-graduação em Direito da PUC de São Paulo, Luiz Manoel Gomes Junior, é o relator. Entre outros nomes de peso do cenário jurídico brasileiro, o grupo conta ainda com a participação da conselheira da OAB e diretora da Escola Superior de Advocacia, Ada Pellegrini Grinover, do ministro do STJ Athos Gusmão Carneiro e do promotor de Justiça e doutor pela USP, Ricardo de Barros Leonel.

  • Confira abaixo a entrevista na íntegra :

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Habeas Data - Como surgiu a ideia de criar uma nova lei das ações coletivas no Brasil?

Aluisio Mendes - O processo civil, no mundo inteiro, sempre foi muito individualista...é aquele pensamento da Roma antiga, de Caio versus Tício (Caio e Tício são personagens modelares dos livros de Direito e representam, alternadamente, o réu ou a vítima de casos hipotéticos, usados para ilustrar o debate jurídico). Só que vivemos numa sociedade na qual as relações de massa precedem as relações privadas. Quem adquire uma linha telefônica, por exemplo, adquire um plano que não é só seu. É de milhares de pessoas. É por isso que o contrato recebe o título 'de adesão', já que o adquirente está, ao assiná-lo, filiando-se, ou aderindo, a um plano coletivo". As relações de trabalho também servem como exemplo: as questões entre um funcionário e seu empregador são as mesmas que afetam todos os trabalhadores da empresa. Sem falar nos temas que comprometem a sociedade inteira, como os problemas ambientais.

Foi a percepção da necessidade de adequar o processo aos tempos atuais que inspirou a proposta de estruturar uma nova legislação, proposta que começou a ser discutida em 2002, durante um encontro do Instituto Ibero-Americano de Direito Processual, realizado em Roma. Houve um outro encontro em Caracas, em 2004, no qual foi aprovado o projeto que começara a ser trabalhado dois anos antes e, mais tarde, o Ministério da Justiça encampou a ideia, criando a comissão, em 2008.

Vários dos países que integram o instituto não têm qualquer legislação que discipline a ação coletiva. Eles encontram no Brasil um paradigma, porque aqui temos a lei da ação popular, da ação civil pública, a parte processual do Código de Defesa do Consumidor, entre outras normas. A intenção é que aqui no Brasil, onde já existe essa tradição, seja preparado um anteprojeto de lei, que sirva de modelo para outras nações e, ao mesmo tempo, que surja como o aperfeiçoamento da nossa legislação.

HD - O senhor disse que o Brasil já conta com leis processuais que servem de paradigma para outros países. Então porque criar uma nova norma?

AM - Nossas leis carecem de uma atualização diante das novas necessidades da sociedade. A lei da ação popular é de 1965. A lei da ação civil pública é de 1985. O Código de Defesa do Consumidor é mais recente, mas mesmo assim já tem quase 20 anos de existência. Além disso, toda essa legislação é muito tímida.

A lei da ação civil pública tem poucos artigos e regula vagamente o processo. Por conta disso, várias outras leis tiveram de ser editadas, cada uma em relação a um objeto específico. Assim é que nasceram o Estatuto da Criança e do Adolescente, a lei de proteção aos investidores em mercado mobiliário, a legislação que trata da proteção aos deficientes físicos, entre outras regras.

Hoje, nós temos um microssistema de processos coletivos muito fracionado. Situação de dispersão que dificulta uma boa interpretação da doutrina e da jurisprudência, além de deixar lacunas. No fim, temos vários estatutos e nenhum deles regulando de forma completa qualquer assunto. Também é preciso notar que o Código de Processo Civil não fala absolutamente nada sobre ações coletivas.

HD - Então a proposta é que esses diversos códigos fiquem concentrados em uma regra processual geral?

AM - Exatamente. Não tem sentido que no ECA o prazo para um determinado procedimento seja de dez dias, e em outro estatuto o prazo para a mesma fase processual seja de cinco. O que queremos é a definição de princípios comuns a todos esses processos coletivos.

HD - Por que o processo coletivo deve preponderar sobre o privado, se qualquer cidadão já tem o direito ao devido processo legal, e, inclusive, tem direito à gratuidade de Justiça, se comprovar sua hipossuficiência?

AM - É importante entender que a ação coletiva tem um papel diferenciado na garantia do amplo acesso à Justiça. Nela, os legitimados - o Ministério Público, a Defensoria Pública, as associações de classe ou de consumidores, entre tantos outros - podem tomar a iniciativa de mover o processo sem que o cidadão tenha de fazê-lo individualmente. Com isso, uma ação que resolva um problema referente à cobrança indevida de tarifas bancárias, ou de planos de saúde, beneficiará pessoas, principalmente as mais humildes, que sabemos que não recorreriam ao Judiciário sozinhas, até por não saberem como agir. De fato, é impossível contar quantas conquistas a sociedade já obteve em decorrência de ações coletivas: o banimento do amianto da construção civil, a proibição do fumo em aeronaves...é difícil imaginar que essas causas começassem por iniciativa isolada de alguém. Por isso eu costumo chamar os direitos defendidos nos processos coletivos de direitos em busca de um autor.

Outro aspecto importante da ação coletiva é que elas reforçam a face isonômica da Justiça, já que uma decisão judicial valerá para todos. Na ação individual, querendo ou não, ocorre uma espécie de "loteria", pois o entendimento de um juiz sobre um tema pode ser muito diferente da interpretação que outro terá. Por fim, cabe lembrar que a ação coletiva pode ser um instrumento importante para desafogar o Judiciário.

HD - De que maneira?

AM - Na década de 1970, o Supremo Tribunal Federal recebia cerca de seis mil processos por ano. Atualmente, ele recebe cerca de 120 mil processos no mesmo período. Quase 20 vezes mais, com o mesmo número de ministros de há três décadas. A súmula vinculante e a repercussão geral são duas das medidas que já foram implementadas para resolver o problema, mas nenhuma delas vale como solução para o primeiro e o segundo graus de jurisdição.

O PL 5.139/09, pelo contrário, prevê vários mecanismos para aliviar as instâncias inferiores do Judiciário. Entre esses mecanismos, está a suspensão cogente de ações individuais em tramitação, quando do ajuizamento de uma ação coletiva sobre o mesmo tema. A solução na coletiva resolverá todos os processos sobrestados. Há também a cláusula que cria um cadastro nacional de ações coletivas, para que não tramitem dois processos desse tipo com o mesmo pedido, ao mesmo tempo, em Estados distintos.

Ainda, a nova lei incentivará os juízes a comunicar às entidades representativas sobre a eventual existência de muitos processos individuais acerca de um determinado pedido. Esse canal de comunicação visará, justamente, a municiar o Ministério Público, a Defensoria Pública e os órgãos de fiscalização, entre várias outras instituições, sobre questões que poderiam ser objeto de ação coletiva.

Enfim, acredito que o processo brasileiro tem de ser o processo do século 21. Penso que essa reforma será a medida mais importante para virarmos de vez a página do assoberbamento do Poder Judiciário, de modo que possamos prestar nossos serviços com a qualidade que a sociedade merece.

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Fonte : Revista Habeas Data nº 72

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