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Para compreender o Judiciário

Celso Luiz Limongi

Surgido um conflito de interesses, isto é, um litígio entre pelo menos duas partes, e se elas não o resolverem amigavelmente, podem valer-se do Judiciário, pois, obviamente, no atual estágio da civilização, não é lícito fazer justiça pelas próprias mãos. Não se pode despejar um inquilino, usando de força física. É preciso solicitar a intervenção do Estado-Juiz.

sexta-feira, 9 de setembro de 2005

Atualizado em 8 de setembro de 2005 09:59


Para compreender o Judiciário



Celso Luiz Limongi*

Surgido um conflito de interesses, isto é, um litígio entre pelo menos duas partes, e se elas não o resolverem amigavelmente, podem valer-se do Judiciário, pois, obviamente, no atual estágio da civilização, não é lícito fazer justiça pelas próprias mãos. Não se pode despejar um inquilino, usando de força física. É preciso solicitar a intervenção do Estado-Juiz.

O juiz somente atua, se for provocado mediante o ajuizamento da competente ação, com assistência, de regra, de advogado.


A grande marca da função do juiz, função jurisdicional, é a imparcialidade: o juiz não pode ter interesse no processo, nem ligações com uma das partes, seja por parentesco, seja por amizade ou por outras razões que o impeçam de decidir segundo a lei e sua consciência. A lei o quer totalmente desvinculado da causa, com o intuito claro de obter-se um julgamento justo.


Para garantir a imparcialidade, o Judiciário precisa ser independente, isto é, que esteja a salvo de injunções políticas exercidas pelos outros Poderes e pelas cúpulas do próprio Judiciário. Para tanto, o magistrado goza de três predicamentos: a vitaliciedade e a irremovibilidade no cargo, e a irredutibilidade de vencimentos. Tais vantagens não são destinadas ao juiz, mas, sim, à sociedade, como ocorre nos estados democráticos.

E a Constituição Federal estabelece que os presidentes dos tribunais no Brasil sejam eleitos por seus pares, sem nenhuma interferência do Poder Executivo federal ou estaduais. Assegura-se, desta forma, à magistratura seu autogoverno. Em princípio, com as três garantias dadas aos juízes e com o autogoverno da magistratura, acredita-se que o magistrado possa julgar com independência.

Ocorre que a promoção do magistrado, em sua carreira, pode ser por merecimento ou por antigüidade. Sob o critério de merecimento, os tribunais não conseguem aferi-lo por dados objetivos (número de sentenças, celeridade, operosidade, qualidade etc.). Pelo contrário, no critério de merecimento não raro surgem fatores subjetivos, às vezes estranhos à função do magistrado, como sua conduta pessoal, embora possa em nada afetar a dignidade de seu trabalho, e outros fatores relativos a sua postura filosófica, religiosa, política, que servem para qualificá-lo ou para desqualificá-lo, segundo os interesses do tribunal.Em outras palavras, esse critério serve como instrumento de pressão.


Por outro lado, como bem anota Andrei Koerner, doutor em ciência política, por causa da organização burocrática e hierarquizada do Judiciário, aliada à "ausência de canais institucionais e públicos, acentua-se o caráter de informalidade e de segredo das relações entre, por um lado, governantes e lideranças políticas e, por outro lado, os responsáveis pela cúpula do Judiciário. Ou seja, os laços políticos entre uns e outros não são conhecidos, os aspectos que determinam as suas relações não são públicos. Em suma, a organização burocrática do Judiciário propicia relações políticas concentradas entre os responsáveis desse poder e os políticos, que podem, pois manifestar as suas preferências para dirigentes do Judiciário que não são politicamente responsáveis, tanto em relação à própria magistratura, como perante a opinião pública e as forças sociais e políticas. Por essas razões é que a independência externa e a organização burocrática do Judiciário são insuficientes para efetivação dos direitos fundamentais" ("Direitos Humanos - Visões Contemporâneas", da Associação Juízes para a Democracia, pág. 191).


A pressão política, exercida sobre os tribunais, e a pressão de poderosos grupos econômicos muitas vezes são bem sucedidas. A cúpula pode ceder a essas pressões e, por seu turno, repassá-las ao magistrado, que, temeroso de ter rejeitada sua promoção por merecimento, cedera a tais pressões.


Pior a pressão sobre o Supremo Tribunal Federal. De há muito postulo a reformulação no critério de seleção dos integrantes desse Tribunal. É preciso que maior número de magistrados de carreira o integre. A "quarentena" ( o candidato a ministro deve desincompatibilizar-se, permanecendo por três anos afastado de cargos políticos) para ingresso nos tribunais superiores seria muito salutar, pois o ministro não ficaria próximo à presidência da República, que é quem o nomeia, com posterior referendo do Senado Federal. O legislador, contudo, infelizmente não impôs esse requisito.


E, com a adoção, pela emenda que reforma o Judiciário, da súmula vinculante, editada pelo Supremo, suas decisões vão obrigar a toda a magistratura nacional. Os juízes serão meros carimbadores de decisões, aplicando as súmulas do Supremo. Deverão obedecer não mais à lei, mas às súmulas. Serão não a voz da lei mas a voz das súmulas. Sem perceber, o Congresso passou para o Supremo sua tarefa de produzir leis...


A criação do Conselho Nacional de Justiça, integrado por seis membros estranhos à magistratura, será outro redutor da independência dos juízes. Estes poderão ser aposentados compulsoriamente por esse Conselho. Está ínsita na função do juiz decidir conflitos. Quem perde, encontra sempre um culpado, o juiz. As mágoas não se dissiparão e a represália faz parte da natureza humana, a permitir a inferência de que, a partir da criação desse Conselho, serão inúmeras as representações contra os juízes.

Em tema de processo penal, a sociedade precisa compreender que não é o juiz a autoridade incumbida de sair à procura de provas. Ao delegado de polícia, na fase do inquérito, e ao promotor público, em juízo, é que cabe produzir prova inequívoca da culpa do réu. Na dúvida, o juiz está obrigado a absolver.


Nosso Judiciário é o melhor da América Latina, na opinião do argentino Raúl Zaffaroni, e um sistema dos melhores do mundo, faltando, no entanto -e apenas isso -verbas suficientes para operar. A morosidade no andamento dos processos se deve essencialmente à falta de verbas e de uma efetiva autonomia orçamentária do Judiciário, do que a reforma constitucional não tratou.
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*Presidente da APAMAGIS - Associação Paulista dos Magistrados

 






 

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