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Monólogo acerca da vida contemporânea

O Estado poderia abolir os cemitérios, instituir crematórios públicos e abandonar o meio pelo qual se desfazem os cadáveres. Assim, teríamos em todos os centros urbanos parques para experienciar um ambiente não tomado pelo urbanismo.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Atualizado às 07:42

Hoje estou resolvido, não me farei entender. Não!

E irei além, serei inoportunamente prolixo, por estar cansado de explicar minuciosamente aquilo que levei anos para compreender e que, por estarem todos ocupados em busca de não sei o que, não me deram ouvidos de ouvir, embora eu tivesse me disposto a falar do alto de minha parca instrução o que ninguém precisa saber.

A sociedade está doente, enferma e sem perspectiva de cura. Os sistemas econômicos foram todos engendrados para sugar do povo toda a energia de que dispõe, são, portanto, bilhões e trilhões de dólares, reais e euros destinados a manter uma elite que escraviza seus súditos pelo embrutecimento.

Eles colocaram caixas em todas as casas e as caixas são falantes; e de falantes as caixas passaram a transmitir imagens e agora as imagens se confundem com as falas e tudo é linguagem.

Eis que já se podem estipular modelos pelo que a caixa ensina e, eis que a caixa agora mostra corpos nus. Incitando o encaixotado a pensar e repensar seus instintos mais primitivos, enquanto não pensa a vida, a religião, a metafísica, o universo e, o imponderável.

Estão todos encaixotados e as caixas remodelaram a vida, porque tudo aquilo que é real na natureza ficou sem cor, porque tudo o que existe agora é percurso, e porque tudo é percurso é que não vejo o colorido que as cores apresentam no percurso que percorro ao ir para o trabalho.

Já não há mais tempo de observar a natureza, senão, pela caixa disposta na sala de estar que, após um dia extenuante de trabalho e horas no percurso, nos mostra uma representação do mundo e das cores que há na natureza e então sonhamos que quando tirarmos férias observaremos na natureza as cores que as caixas nos mostram.

Chegaram as férias, os valores auferidos serão utilizados para ajustar o orçamento familiar nos concedendo estabilidade para aproveitar, quem sabe, as próximas férias. Assim, passo as férias olhando para a caixa disposta na sala que me mostra o mundo, as cores, um pouco da natureza, violência e, corpos nus.

Porque as caixas mostram corpos nus e, porque os corpos nus são considerados perfeitos, se a perfeição estética é mera subjetividade? Não importa!

As caixas mostram corpos e nos incitam os comportamentos mais primitivos e cruéis, sexo e violência, como se as caixas quisessem que eu desejasse ter o corpo que não tenho e vir a cometer o crime ao qual não me atrevo.

Por fim, acabaram as férias, e agora, já posso voltar as minhas ocupações normais, empregando minha força de trabalho para receber o dinheiro com o qual pago os que esperam ser pagos, e assim, obtenho o sustento embora o sustento muitas vezes não sustente.

Sim, porque, afinal, o que é sustentar?

Tenho apenas sustentado minhas necessidades mais humanas e biológicas, a moradia para habitar e o alimento para sustentar o corpo que sustenta a minha alma e, assim, me falta cultura, espaço, livros e lazer.

Aliás, o que é o lazer?

Será aquilo que a caixa tem me mostrado e me dito de forma tão verossímil nas novelas, ou será tudo novelo e engodo e ledo engano de um pobre encaixotado que sequer sabe o que é lazer.

Não, espera!

Talvez o lazer seja o descanso, se comprazer com o corpo disposto sobre a cama sem precisar levantar-se para cumprir com obrigações, ou talvez, seja não estar obrigado a suprir as demandas de outrem.

Não! Definitivamente não!

Isto não passa de repouso que compraz em virtude da cessação da ação de cumprir com os imperativos profissionais e demandas do outrem que nos exige todo o carinho e atenção quando, quando mereceríamos um momento de introspecção.

Introspecção; introspecção; introspecção!

Somos tão de tudo e de todos que mal nos conhecemos, carecemos do tempo necessário ao autoconhecimento. É isso! Observar no percurso as cores que se escondem no percurso e não na caixa que nos mostram as cores do percurso e, introspecção. Talvez isso seja, lazer.

Não. Definitivamente não!

O lazer é mera especulação de cada indivíduo e não poderia eu, que apenas especulo o que é lazer, arvorar-me da definição de lazer, quando, possa este ser a descontração na caixa da violência e dos prazeres e das cores do percurso.

Sinto vontade de sair à rua e ver as cores, mas a caixa, a caixa me diz que é perigoso e ainda, não obstante os perigos que ela nos mostra, ainda, o que faria eu pelo percurso daqueles que percorrem o percurso?

O que eu haveria de fazer nas calçadas e ruas em que se andam para se chegar onde se precisa estar? Haveria cores para ver, ou no percurso haveria apenas eventos transitórios e desconexos? Seria eu tachado de louco por estar observando o percurso daqueles que percorrem o percurso ou, ainda, me achariam um desocupado por não estar percorrendo o percurso que se percorre a fim de se chegar onde se precisa estar?

Tudo é tão cinza e escuro e artificial na natureza que só pode ser outra coisa que não a natureza, mas sim, a tomada dos espaços pela urbanização e a urbanização limita o acesso a natureza para que possamos chegar mais rápido onde se precisa estar.

Sempre ele, o percurso. Tudo é percurso. Nada mais é estático, tudo é transitório e passageiro porque é perigoso estar parado onde ninguém está parado, porque todos estão, em percurso.

Talvez o Lazer seja escrever, escrever aquilo que penso e explicar que penso porque fui adestrado a não pensar e, tão logo penso nisso me acho subversivo.

Somos adestrados a não pensar sobre os percursos que a vida nos impõe, porque já não temos tempo de aproveitar e viver tudo aquilo que o televisor nos mostra, e que vivemos somente através de nossos sonhos.

A vida tornou-se uma usina porque a usina tornou-se o mundo, ou, o mundo tornou-se usina porque, por mais que saiamos dela, da usina, o percurso é tão ruidoso e sujo que se assemelha a uma fábrica empoeirada e barulhenta.

Saímos do trabalho e não experienciamos o mundo real, porque precisamos da segurança de nossos lares, onde as caixas nos mostrarão tudo aquilo que não se pode mais ver ou perceber.

Desliguemos a caixa do nada e passemos a observar a vida através do percurso, descobriras, inclusive, que anônimos residem por lá, deitados ao relento porque não tem um lar para onde retornar, são, portanto, os moradores do percurso, viventes de um lugar que não é lugar, porque, é onde ninguém almeja estar, senão passar.

Aliás, como será a vida quando observada do percurso? Os andarilhos estão condenados ao degredo ou, afinal, somos nós os andarilhos? Teriam os moradores de rua, viventes do percurso, eles, que estão estáticos no percurso, a percepção de que somos nós os condenados ao degredo? Alienados pelo cotidiano alienante?

Não, certamente invejam aqueles que possuem um lar para onde retornar, porque nada pode ser pior do que estar perdido e abandonado no percurso. Sempre ele, o percurso, maldito percurso que fez do ambiente um nada que se atravessa de um local ao outro, do local de saída ao destino a que se destina aquele que passa.

O Estado poderia abolir os cemitérios, instituir crematórios públicos e abandonar o meio pelo qual se desfazem os cadáveres. Assim, teríamos em todos os centros urbanos parques para experienciar um ambiente não tomado pelo urbanismo.

Sim, os parques são a memória do mundo que se esvai, o mundo morre a cada rua que é pavimentada e, sendo assim, urge a arborização dos espaços urbanos e a destinação de espaços para que os viventes possam ter contato com a natureza, fora do percurso.

Despejemos todos os mortos, deixemos os mortos para os mortos e construamos jardins botânicos onde por ora se acumulam as catacumbas; é a sociedade que precisa evoluir e desapegar-se de antigas tradições para voltar a conviver com o mundo que transformou em usina; pelo menos teríamos um espaço fora do lar que não fosse, percurso.

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*Nelson Olivo Capeleti Junior é advogado no escritório Schulze Advogados Associados. Bacharel em Direito pela Faculdade Cenecista de Joinville e aprovado no XX Exame de Ordem, OAB/SC 51.501.


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