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Relativizando a tortura ou o retorno da barbárie

A tortura, que já foi legitimada como meio de obtenção de prova, mormente a confissão, há bastante tempo tem sido rechaçada, seja pela sua desumanidade, seja pela sua inépcia.

terça-feira, 14 de março de 2017

Atualizado às 09:59

Realmente não é possível conceber a História como uma sucessão linear de fatos e muito menos dividi-la, a não ser para fins didáticos e esquemáticos, em fases estanques.

A tortura, que já foi legitimada como meio de obtenção de prova, mormente a confissão, há bastante tempo tem sido rechaçada, seja pela sua desumanidade (relativa não somente ao torturado, mas até mesmo ao torturador), seja pela sua inépcia, especialmente quanto a uma suposta "confissão". Parecia que as lições de Beccaria1 e Verri2 haviam sido absorvidas em definitivo e que somente marginais do intelecto e da humanidade ainda poderiam recorrer a esse tipo de conduta, mesmo assim sem amparo legal, muito ao reverso, cometendo crime grave, seja nos ordenamentos jurídicos internos ou internacionais.

Entretanto, como já explicitado acima, a tortura, enquanto fenômeno histórico também não comporta divisões em fases estanques e muito menos a ilusão de seu fim, ainda que sob o aspecto legalizado. Em sua análise estritamente histórica da tortura, Peters demonstra como essa prática infame se estende pelos séculos e chega à contemporaneidade.3

Sempre é bom lembrar o que poeticamente nos ensina Quintana:

"A História não é uma série de slides parados, separados uns dos outros, como nos antigos compêndios de História".4

O fato é que em pleno século XXI e mesmo no seio de supostas democracias consolidadas, vão surgindo defensores da prática da tortura institucionalizada (nem é preciso falar de sua tolerância marginal). Como sempre não faltam as invocações das famigeradas "razões de Estado", que em todos os tempos têm surgido para os homens como justificação admissível para qualquer crime ou barbaridade.5

Greco expõe a discussão atual sobre o tema e seu acirramento em face do terror global:

"Por conta disso tudo, novas discussões têm sido realizadas sobre a possibilidade/necessidade do uso oficial da tortura como mais um instrumento de 'defesa' contra o terrorismo. Essas discussões ocorrem, principalmente, em países que vivem, ou pelo menos já vivenciaram, as consequências dos atos terroristas, e entendem que o uso oficial da tortura terá o condão de auxiliar o combate a essas células criminosas, que contam, cada dia mais, com a simpatia de jovens, cujas mentes vêm sendo 'lavadas' com discursos mentirosos e doentios.

É comum, durante as discussões jurídicas, o argumento de que nãoexistem direitos absolutos, e, hoje, a utilização da tortura, como forma não somente de obter a confissão pela prática de determinados crimes mas, principalmente, como meio de investigação, a fim de identificar agentes terroristas, evitando-se o cometimento de atentados, tem sido corriqueiramente mencionada, principalmente na Europa e nos Estados Unidos".6

Há uma espécie de polarização dos entendimentos acerca dessa questão. Uns entendem que a tortura deveria ser regulada e aplicada novamente de forma institucional para certos casos graves. Outros (a nosso ver com plena razão e sanidade mental) advogam a tese de que a tortura não é jamais admissível em quaisquer circunstâncias e nunca mais deve ser institucionalizada.

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1 BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Trad. Paulo M. Oliveira. Rio de Janeiro: Ediouro, 1985, p. 46 - 54.

2 VERRI, Pietro. Observações sobre a tortura. Trad. Frederico Carotti. São Paulo: Martins Fontes, 1992, "passim".

3 PETERS, Edward. Tortura.Trad. Lila Spinelli. São Paulo: Ática, 1989, "passim".

4 QUINTANA, Mário. Da preguiça como método de trabalho. 4ª. ed. São Paulo: Globo, 2000, p. 73.

5 MELLOR, Alec. La Tortura. Trad. José GoñiUrriza e German O. Galfrascoli. Buenos Aires: Sophos, 1960, p. 21.

6 GRECO, Rogério. Leis Penais Especiais Comentadas - Crimes Hediondos e Tortura. Volume 1. Niterói: Impetus, 2016, p. 169.
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*Eduardo Luiz Santos Cabette é delegado de Polícia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós - graduação do Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado do Unisal

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