MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Migalhas de peso >
  4. O Ouro Azul de Guarani

O Ouro Azul de Guarani

Ariana Garcia

Estamos no século da Água: o Ouro Azul, cuja demanda de uso e gestão prevê, por muitos estudiosos, escassez, racionamento e novas guerras imperialistas.

terça-feira, 4 de abril de 2017

Atualizado às 07:46

"A proteção internacional é mais difícil do que a proteção no interior de um Estado, particularmente no interior de um Estado de Direito." Mesmo sendo uma afirmação de Norberto Bobbio (A Era dos Direitos), sobre a efetivação do crescente rol de direitos da humanidade, ponderável é a máxima quando interesses econômicos internacionais podem interferir em assuntos de soberania nacional. A eficácia da proteção de direitos requer discussão e engajamento, o que depende de clareza à sociedade sobre o que está sendo traçado pelos governos dos Estados ditos democráticos. Qualquer tendência nacional não evidente compromete o dever e a tarefa de se proteger bens, direitos e patrimônios.

Estamos no século da Água: o Ouro Azul, cuja demanda de uso e gestão prevê, por muitos estudiosos, escassez, racionamento e novas guerras imperialistas. A água é bem de primeira necessidade, a dar concretude à dignidade humana e a fomentar processos produtivos. O crescimento populacional no mundo, estimado em 9 bilhões de pessoas até 2050 (Como Cuidar de Nossa Água, BEI) tem despertado a ONU para a necessidade de enfrentamento da crise sentida pelo consequente aumento do consumo para atividades agrícolas e industriais, além de saneamento básico.

Edição de nº 23 da Revista Em discussão! no site do Senado Federal assevera que a população mundial necessitará de 40% a mais de água em 2030, apostando em dificuldades de acesso ao recurso, especialmente pelos mais pobres. Apesar disso, a gestão sobre ela não mudou entre 2009 e 2014, segundo
Relatório Mundial das Nações Unidas sobre Desenvolvimento dos Recursos Hídricos.

Ainda de acordo com a ONU, dentre as medidas de boa gestão da água, o debate social sobre governança local, nacional e internacional sobre fontes públicas, fossos, poços, nascentes protegidas e coletas de água pluvial é imprescindível.

Essa é uma estratégia já reconhecida por multinacionais que pretenderiam monopolizar o fornecimento de água, como Monsanto, Bechtel, Coca-Cola, Pepsi, Danone e Nestlé.

A discussão sobre privatização da água torna-se cada vez mais presente. São recentes nos noticiários os protestos no México e outras investidas na América Latina. Também o governo português foi arduamente pressionado pela não privatização dos recursos hídricos.

Em Paris e Berlim, as privatizações no abastecimento da década de 1980 estão agora sofrendo processos de reestatização. E no Brasil, a discussão do tema inicia-se com contornos de dúvida e sem muita transparência. Primeiro, a privatização da água contribui com a meta de crescimento do país? Como, efetivamente? O que se busca: a venda das fontes da água potável brasileira, ou a concessão da exploração da gestão de todas as demandas e serviços sobre o recurso?

A Lei 13.334 de setembro de 2016 cria o Projeto Crescer ou Programa de Parceria de Investimentos (PPI), que define inclusive para os Estados, DF e municípios, deveres por ampliação e facilitação das relações entre Estado e iniciativa privada, através de novos investimentos em projetos de infraestrutura e de desestatização. O Governo Temer defende que o Projeto visa criação de novos empregos e outros aspectos de desenvolvimento. Mas de outro lado, órgãos como a ANA (Agência Nacional de Águas), que faz parte do Conselho do PPI, e ainda diversas entidades sindicais e da sociedade civil têm alertado para a possibilidade da privatização do Sistema do Aquífero Guarani (SAG).

Trata-se da principal reserva natural subterrânea da América do Sul de água potável, em cerca de 1,2 milhões de Km², que abrangem Uruguai (5%), Paraguai (5%), Argentina (21%) e Brasil (69%), passando pelos Estados de Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Tem capacidade de abastecer a população brasileira por 2.500 anos. Possui aproximado volume d'água de 45 mil Km³ e recarga de 150 mil Km², por ano, através de precipitações e da filtração de suas rochas arenosas, responsáveis pela acumulação de água.

É objeto de estudo do Projeto de Proteção Ambiental e Desenvolvimento Sustentável do SAG, informa o Ministério do Meio Ambiente, sendo base do Programa Estratégico de Ação, que é ou deveria ser acompanhado pelos Estados, cujos territórios são percorridos pelo Aquífero, como o caso de Goiás.

Alvo de contaminação e poluição, sobretudo por agrotóxicos e resíduos industriais, que podem alterar lençóis freáticos e corpos d'água mais superficiais, em agosto de 2010, os países do Aquífero celebraram acordo de proteção ao manancial, que inclusive barrou a exploração e uso por interessados internacionais. Entretanto, até hoje não houve ratificação do Congresso Nacional Brasileiro.

A privatização do Aquífero Guarani parece não constar na lista do PPI, o que, todavia, não é imutável, visto que os bens públicos a serem vendidos podem ser inseridos no plano de investimento, por resoluções e decretos. Mesmo assim, tão logo conste do rol a privatização, se ela significar a venda, ainda deverá romper o caminho constitucional e legal para seu perfazimento: art. 37, XXI da Constituição da República (alienação mediante processo de licitação pública), sendo prévia a autorização do Legislativo, e ainda justificado o interesse público e feita avaliação prévia (inteligência do art. 17 da Lei de Licitações). Esse entendimento é pacífico no Supremo Tribunal Federal, exemplo é o Mandado de Segurança 22.509.

A entrega do manancial para empresas multinacionais, todavia, dependeria ainda de alteração da Constituição Federal, em função do que hoje estabelece o art. 190 (autorização do Congresso Nacional para aquisição de terra por pessoas estrangeiras), bem como do Estatuto da Terra e da Lei 5.709/71. Por isso não, a PEC 215 e o PL 4059/2012, se aprovadas, prestariam a facilitar o processo.

Já se a privatização significar gestão da exploração do Aquífero por longo período poderia ser consubstanciada na Lei de PPP. Mas a despeito do argumento de desenvolvimento ao Brasil do Projeto Crescer, o potente mercado agropecuário brasileiro, voltado para o abastecimento externo, seria um dos mais comprometidos, ao final, pelos estragos ambientais desmensurados, e que ficariam para as futuras gerações; bem como pela perda de autonomia de propriedades e sobre negócios. Isto sem falar na significativa diminuição do acesso à Água a todos, num país como o Brasil, que registra ter 12% de toda a água doce do mundo. E ainda a perda econômica e humana para a população de todos os países aonde se situa o reservatório.

A possibilidade da privatização e suas consequências devem ser debatidas com seriedade. A escassez hídrica é assunto da ordem do dia e requer pensamento multidisciplinar no seu tratamento. Seja pela venda ou pela gestão da exploração do Aquífero, a discussão deve ganhar efetiva transparência, sem subterfúgios e com responsabilidade. O parlamento deve considerar os anseios da sociedade, e a economia, sustentabilidade e desenvolvimentismo para determinar os rumos do patrimônio brasileiro.

Novamente, as palavras de Norberto Bobbio ganham indiscutível atualidade, no que se refere aos direitos universais, no caso em apreço, sobre o acesso à água: "Busquemos não aumentar esse atraso com nossa incredulidade, com nossa indolência, com nosso ceticismo. Não temos muito tempo a perder".
____________

*Ariana Garcia é advogada, especialista em Direito Constitucional, Direito Administrativo e mestranda em Direito Agrário pela UFG. Membro da Comissão da Mulher Advogada da OAB nacional.


AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca