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A falta do interesse de agir nos pedidos de desconsideração da personalidade jurídica contra empresas em recuperação judicial

O Códex, em verdade, preocupou-se em prever adequadamente a existência de um procedimento específico para que se pudesse decretar a desconsideração da personalidade jurídica.

sexta-feira, 11 de maio de 2018

Atualizado às 08:50

O novo CPC inovou ao prever a formação de incidente processual nos casos em que a parte credora pleiteia a desconsideração da personalidade jurídica de empresas, visando, assim, a condenação solidária de sócios ao pagamento de dívida da sociedade (na fase de conhecimento), ou então o redirecionamento da execução (ou cumprimento de sentença) às pessoas naturais, sendo certo que a inovação se deu e se mostrou necessária muito ante a existência, até à época, dos diversos entendimentos acerca da forma de aplicação e apresentação do pedido nos processos em trâmite.

Nesse ponto, o Códex, em verdade, preocupou-se em prever adequadamente a existência de um procedimento específico - e, em regra, autônomo e apartado - para que se pudesse decretar a desconsideração da personalidade jurídica, privilegiando e impondo o debate e a produção de provas, em atenção aos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório, sem os quais não mostra-se cabível o provimento jurisdicional que atinja os sócios da empresa devedora (ou vice-e-versa, nos casos da desconsideração da personalidade jurídica inversa). E, isso porque, como bem se sabe, a desconsideração apresenta-se como medida excepcional e rigorosa, apenas podendo ser decretada em casos onde não restem dúvidas acerca da utilização indevida da personalidade jurídica para fins ilícitos.

É de se ver, nesse interim, que mesmo com a inovação do direito processual, o direito material a ser discutido no incidente processual será o mesmo que anteriormente, tangente ao abuso de personalidade previsto no artigo 50 do CC de 2002, exigindo-se, assim, a comprovação de abuso de direito, mediante o desvio de finalidade ou confusão patrimonial, hipóteses cujo debate sobre não encontra-se nem de longe exaurido.

Ainda assim, para que se "levante o véu" da personalidade jurídica, a doutrina e a jurisprudência entendem que certos requisitos devem estar presentes.

Na doutrina, leciona Carlos Roberto Gonçalves1:

Efetivamente, a desconsideração da pessoa jurídica exige comprovação de fraude, abuso de direito, desvio de finalidade ou confusão patrimonial para que se aplique a mencionada teoria, não se podendo aceitar como tal a mera insolvência da pessoa jurídica ou dissolução irregular da empresa. A propósito, proclamou o STJ que o fato de o credor não ter recebido seu crédito frente à sociedade, em decorrência de insuficiência do patrimônio social, não é requisito bastante para autorizar a desconsideração da pessoa jurídica.

A jurisprudência pátria por seu turno, não divergindo, entende que o CC acatou a Teoria Maior da Desconsideração da Personalidade Jurídica, segundo a qual, além da confusão patrimonial e/ou o desvio de finalidade, a desconsideração da personalidade jurídica exige a presença do pressuposto específico do abuso da personalidade jurídica com a finalidade de lesão a direito de terceiro, infração da lei ou descumprimento de contrato.

Nessa linha, já decidiu o STJ que "para a aplicação da teoria maior da desconsideração da personalidade social, exige-se o dolo das pessoas naturais que estão por trás da sociedade, desvirtuando-lhe os fins institucionais e servindo-se os sócios ou administradores desta para lesar credores ou terceiros" (EREsp 1306553/SC, relatora: ministra Maria Isabel Gallotti, Segunda Seção, DJe 12/12/14).

Ou seja, de acordo o Tribunal Superior "a desconsideração da personalidade jurídica de sociedade empresária com base no art. 50 do CC exige, na esteira da jurisprudência desta Corte Superior, o reconhecimento de abuso da personalidade jurídica com o desvio de finalidade ou confusão patrimonial com o objetivo de fraudar." (AgInt no REsp 1613653/RS, relator ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 09/05/17, DJe 23/05/17)

Assim, para a aplicação da Teoria Maior da Desconsideração da Personalidade Jurídica exige-se a comprovação de que a sociedade era utilizada de forma dolosa pelos sócios como mero instrumento para dissimular a prática de lesões aos direitos de credores ou terceiros, o que deve ser demonstrado mediante prova concreta e verificado por meio de decisão fundamentada. A teoria tem como parâmetro de incidência, portanto, a atuação ilegítima da sociedade.

Inobstante, o STJ assentou o entendimento de que é necessário, além do requisito subjetivo concernente ao desvio de finalidade ou confusão patrimonial (art. 50 do CC), pautado na Teoria Maior da Desconsideração da Personalidade Jurídica, o requisito objetivo de insuficiência patrimonial da devedora (REsp 970.635-SP, DJe 1.12.2009; REsp 1.200.850-SP, DJe 22.11.2010; REsp 693.235-MT, DJe30.11.2009).

Inobstante, em relação às empresas em recuperação judicial, tal entendimento, mormente quanto ao requisito objetivo, deve ser analisado em conjunto às disposições da Lei de Recuperação de Empresas e Falência (lei 11.101/05), que preceitua em seu art. 59, que "O plano de recuperação judicial implica novação dos créditos anteriores ao pedido, e obriga o devedor e todos os credores a ele sujeitos, sem prejuízo das garantias, observado o disposto no § 1o do art. 50 desta Lei".

Em olhar apurado, e de tal forma, tem-se que se mostra impossível a configuração do requisito objetivo da desconsideração da personalidade jurídica em face das empresas que possuem deferido o processamento da sua recuperação judicial, uma vez que a insuficiência patrimonial dessas empresas somente poderá ser caracterizada quando da apreciação e execução do plano de recuperação e cumprimento das obrigações impostas.

Deve-se considerar que, se a recuperação judicial fora deferida à empresa, é porque tal medida mostra-se ao menos viável. Ou seja, demonstra que o Poder Judiciário considerou que havia a possibilidade da empresa soerguer-se, e pagar por suas próprias dívidas, sem que se mostrasse adequada naquele momento a decretação de falência da sociedade.

Por conseguinte, havendo a possibilidade de pagamento da dívida pela devedora originária, ainda que por meio do Plano de Recuperação, não já se falar em insuficiência patrimonial da empresa, uma vez que esta pagará por seus débitos. Contudo, pagará cumprindo o plano recuperacional, conforme previsto na LREF.

Ainda assim, é comum e hodierno que diversos credores cujos créditos se sujeitam à recuperação judicial (por não se tratarem de créditos extraconcursais, exceções previstas no art. 49 da lei 11.101/05), considerando a dificuldade do cumprimento de pronto da sua obrigação, ante a eventual demora na satisfação das dívidas, requeiram a desconsideração da personalidade jurídica de empresas recuperandas, manejando o ingresso no patrimônio pessoal dos sócios, desconsiderando por completo que a quitação de seus créditos deve-se dar via da recuperação.

Tal situação, contudo, não pode ser admitida. Ainda que se trate de um incidente processual, não foge ao pedido de desconsideração que deva este apresentar o imperioso interesse de agir, que se sustenta no trinômio: adequação, utilidade e necessidade. Ou seja, quando há necessidade da intervenção do Poder Judiciário, quando o processo se afigura útil para esse fim, bem como quando o aludido instrumento é adequado para propiciar o resultado almejado pelo autor. Em outras palavras, haverá necessidade quando for preciso a reparação à lesão de direito, a utilidade sempre que o provimento jurisdicional seja capaz de entregar o bem de vida àquele a quem pertença juridicamente, enquanto a adequação se dá em razão da certa escolha procedimental para sanar o conflito.

Acerca da necessidade, doutrina Daniel Amorim2, à propósito: "Haverá necessidade sempre que o autor não puder obter o bem da vida pretendido sem a devida intervenção do Poder Judiciário".

Nas situações em comento, todavia, mostra-se desnecessário o provimento jurisdicional requerido, uma vez que se a empresa recuperanda possui meios de pagar a dívida (viabilidade da recuperação judicial), não é preciso que o Autor atinja o patrimônio dos sócios da empresa, devendo consignar, inclusive, que a tentativa de atingir o patrimônio dos sócios nada mais apresenta-se como tentativa de burlar o próprio fim da Recuperação Judicial, que é de possibilitar à empresa em crise o seu soerguimento e o pagamento dos seus débitos, mediante os mecanismos e benefícios previstos na lei.

Seguindo tal entendimento foi que a 6ª Vara Cível da Comarca de Santos, Estado de São Paulo, nos autos 1030189-14.2017.8.26.0562, extinguiu, sem resolução de mérito, pedido de desconsideração da personalidade jurídica em face de empresa em recuperação judicial, indeferindo-se a petição inicial.

No julgado, entendeu-se que em razão do crédito ter sido arrolado no Plano de Recuperação, e de que neste contexto há "a possibilidade de pagamento da dívida pela devedora originária, ainda que por meio do Plano de Recuperação, por ora, inexiste o interesse de agir em face dos sócios e administradores". O magistrado Joel Birello Mandelli ainda considerou que "Entendimento diverso prestigiaria, ainda que por via oblíqua, burlar o Plano de Recuperação Judicial, cobrando a dívida de quem ainda não tem responsabilidade, ao menos até o momento".

Portanto, ao nosso ver e consoante o decisum citado, evidente que carece do interesse de agir, por falta de necessidade, os pedidos de desconsideração da personalidade jurídica em face de empresas em recuperação judicial, nas ações que visam o recebimento de créditos que se sujeitam à recuperação, devendo ser respeitada, por parte dos credores, a paridade entre esses (princípio do par conditio creditorum), habilitando-se os créditos perante o juízo da recuperação, e aguardando o pagamento, sem que se seja admissível ou necessário que se redirecione a dívida aos sócios enquanto a empresa ainda é capaz de saldar suas dívidas, o que, por corolário lógico, mostra-se como ausência do requisito objetivo da desconsideração da personalidade jurídica.

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1 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Parte Geral. 14. ed. - São Paulo: Saraiva, 2016. Página: 259.

2 NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil - Volume único. 9. ed.- Salvador: Ed. JusPodivm, 2017. Página: 134.

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*Thaís Dudeque Gonçalves é pós-graduada em Direito Tributário e advogada e sócia da A Santos Advogados Associados, sociedade de advocacia especializada em Recuperação Judicial de empresas, com sede em Curitiba, Paraná.

*Adler Batista Oliveira Nobre é advogado da A Santos Advogados Associados, sociedade de advocacia especializada em Recuperação Judicial de empresas, com sede em Curitiba, Paraná.

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