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Tempus fugit, por Eudes Quintino

Tempus fugit

O novo ano bate à porta. Receba-o com a pompa merecida. E não se esqueça que lhe será entregue uma página em branco para ser preenchida. Insira nela suas ações abundantes de esperança e solidariedade, que jamais serão apagadas pelo tempo.

domingo, 30 de dezembro de 2018

Atualizado em 7 de outubro de 2019 17:10

Quando dois amigos se encontram, um deles mais velho, e desfrutam de uma conversa amistosa, inevitavelmente vão se lembrar do passado, de muitas passagens e sensações, e irão refletir sobre o tempo, sua incidência, seus efeitos, seus danos e ganhos. Virgílio, poeta romano, dizia tempus fugit, irreversivelmente o tempo se esvai.

Num linguajar mais atual, adaptado ao tempo presente, pode-se dizer que o tempo voa, vem e vai como o vento e com ele se desfaz. Nem as cinzas são recolhidas, a não ser as que encontraram refúgio e se alojaram em nossas memórias. Ali, cuidadosamente, guardamos as parceiras e testemunhas de nossas vidas. Machado de Assis já proclamava que os anos passam, os acontecimentos vêm uns sobre os outros e as sensações também. Carpe diem, como pregavam os romanos, nada mais significa do que viver o momento com tanta intensidade até exauri-lo por completo. O presente é um presente.

Não é preciso remontar os anos da infância e mocidade para dimensionar o tempo. Basta ver o glorioso nascimento de cada dia, num venturoso parto e num indescritível crepúsculo. Momentos e mais momentos que se somam e escrevem a história de todos nós. "Contemplar mais entardeceres, subir nas montanhas, nadar nos rios..." canta a inesquecível poesia de Jorge Luis Borges. Pois se não sabe, disso é feita a vida, essa estrada que se inicia larga e vai se estreitando cada vez mais, até se tornar intransitável. Basta ver a terrível contagem dos segundos que formam um minuto, que desafoga na hora e esta, por sua vez, multiplicada de forma imperdoável, acrescenta mais um dia. Mais um para o tempo, menos um para você.

Tempus fugit. Irreversivelmente o tempo foge. É o depurador da natureza.

Mais um ano vai fechando seu ciclo. Ledo engano seu, meu amigo, querer aprisionar o tempo. É a única realidade inexorável. Nesta contagem regressiva você encomprida seu olhar e dá de frente com o passado, que quer reinar ainda com força se o presente se silenciar. É hora de estabelecer a correção da rota e alçar voo em busca de ideais moldados na renovação do ser humano. Não se trata simplesmente de procurar motivo para viver, como se a vida por si mesma, não se justificasse, como alardeava Clarice Lispector.

Enquanto isso, sabe-se lá quando novo encontro vai acontecer, cada um seguindo por caminhos diferentes, apesar de que a idade recomenda a canalização de esforços para uma vida mais concentrada em objetivos viáveis, nesta contagem regressiva, ainda com tempo do meu tempo, faço ao amigo mais novo algumas observações retiradas do canteiro da vida: não fique procurando os lamentos das palavras, a fragilidade das vírgulas e o estertor do ponto final, tudo para que fique adormecido dentro de si mesmo. Tomara que você possa apreciar a beleza singela da serenata ao luar de Beethovem e dançar rodopiando o bolero de Ravel; você possa mirar o infinito e fazer com que, usando as cores e pincéis que lhe foram confiados, pinte o mundo de acordo com a sua cor, para que a travessia seja mais excitante e a paisagem mais bela; você possa sentir o amor em toda sua plenitude, abrir os braços e ir ao encontro da felicidade; você possa ser verdadeiro artífice do justo, da dignidade, da honradez e que suas obras sejam perpetuadas para que se façam eclodir os valores morais da sociedade; você possa sentir o milagre da vida, tão belo quanto curto, que deveria ser cultivado como as flores mais raras; você possa pedir colo a Deus e nessa efusão de abraços afetuosos, sinta a grandiosidade do espírito humano, vocacionado para o infinito e a eternidade; você possa fazer da pena o estilete a penetrar interiores e pinçar, lá no fundo, os fantasmas que habitam os porões da alma humana, devassá-los e cegá-los com a luz da verdade; você possa carregar neste corpo nanico o gigante sonho que acalenta em sua alma e realizar o sucesso pluralista de suas aspirações; você possa fazer da solidariedade sua bandeira para desinchar o egoísmo que consome as pessoas e reverter em dividendos de bonança e a mais perfeita sintonia fina nos elevados projetos humanitários; você possa buscar o sucesso de que é merecedor, pelo seu talento e a cada virada de página, receba os aplausos com a franciscana humildade; você possa, enfim, vencer todas as dificuldades superando-as com a espada afiada do anjo Exterminador que, com toda certeza, será seu protetor contra as hostes inimigas.

O novo ano bate à porta. Receba-o com a pompa merecida. E não se esqueça que lhe será entregue uma página em branco para ser preenchida. Insira nela suas ações abundantes de esperança e solidariedade, que jamais serão apagadas pelo tempo.

Alvíssaras! Evoé!

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de justiça aposentado/SP, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, reitor da Unorp, advogado.

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