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O princípio da taxatividade administrativa militar

João Bosco Maciel Junior

Hodiernamente desponta como disciplina autônoma do ramo do Direito Administrativo - o chamado Direito Administrativo Militar. Por outro lado, não conseguiu, ainda, total autonomia a disciplina do processo administrativo militar que está muito longe de constituir paradigma formador de uma necessária teoria geral do processo administrativo militar.

segunda-feira, 27 de outubro de 2003

Atualizado às 07:10

O princípio da taxatividade administrativa militar

 

João Bosco Maciel Junior*

 

Hodiernamente desponta como disciplina autônoma do ramo do Direito Administrativo - o chamado Direito Administrativo Militar. Por outro lado, não conseguiu, ainda, total autonomia a disciplina do processo administrativo militar que está muito longe de constituir paradigma formador de uma necessária teoria geral do processo administrativo militar.

 

Pouco ou quase nada se disse, ainda, na literatura jurídica nacional acerca do processo administrativo militar1. A incompatibilidade com o Estado de Direito no desenvolvimento indicado se acentua ao mirar-se o art. 5º, inciso LV, da Constituição da República de 1988.

 

Portanto, sem buscar parecer leviano, nem ambicioso demais, a análise se restringirá, tão-somente, ao princípio da taxatividade administrativa militar, donde o risco da superficialidade se confundirá com a almejada responsabilidade de objetividade, clareza e síntese, porquanto ausente qualquer pretensão de inovar.

 

A Lei Complementar Estadual n.º 893, de 09 de março de 2001, institui o Regulamento Disciplinar da Polícia Militar do Estado de São Paulo.

 

A hierarquia e a disciplina são as bases da organização da polícia militar. Pode-se dizer, com isso, que a hierarquia policial-militar é a ordenação progressiva da autoridade, em graus diferentes, da qual decorre a obediência, dentro da estrutura da polícia militar, culminando no Governador do Estado, chefe supremo da polícia militar.

 

Assim, a Lei Complementar Estadual n.º 893, de 09 de março de 2001, estabelece normas abertas e de conteúdo variado que expressam evidente vulneração ao princípio da taxatividade administrativa militar.

 

O princípio em enfoque decorre naturalmente de outro - o princípio da legalidade - segundo o qual ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.

 

Em matéria disciplinar, contudo, a legalidade se expressa no imperativo de que as condutas transgressionais sejam previamente tipificadas - o administrador deve fazer só aquilo que a lei mandar - com explicitação pormenorizada dos elementos infracionais.

 

Interpretação diversa, por qualquer artifício de raciocínio, desemboca na possibilidade de se definir a posteriori o que é permitido ou proibido, solução infensa aos valores prestigiados pelos fundamentos do Estado Democrático de Direito.

 

As condutas abertas e de conteúdo variado representativas do ilegal poder disciplinar absoluto da autoridade administrativa militar, consoante manifesto abuso de poder, são previstas no artigo 12, do Regulamento Disciplinar da Polícia Militar do Estado de São Paulo, que dispõe, in verbis: "artigo 12 - transgressão disciplinar é a infração administrativa caracterizada pela violação dos deveres policiais-militares, cominando ao infrator as sanções previstas neste regulamento; § 1º - as transgressões disciplinares compreendem: 1 - todas as ações ou omissões contrárias à disciplina policial-militar, especificadas no artigo 13 deste regulamento; 2 - todas as ações ou omissões 'não especificadas' no artigo 13 deste regulamento, mas que também violem os valores e deveres policiais-militares; § 2º - as transgressões disciplinares previstas nos itens 1 e 2 do § 1º, deste artigo, serão classificadas como graves, desde que venham a ser: 1 - atentatórias às instituições ou ao estado; 2 - atentatórias aos direitos humanos fundamentais; 3 - de natureza desonrosa".

 

Como se vê, os conceitos são indeterminados.

 

A doutrina identificou a relevância desta indeterminação de conceitos normativos há muito. Com a evolução do debate, deslocou-se o tema da discricionariedade administrativa (não absoluta) para o campo da vinculação estrita propondo-se, então, o controle dessa indeterminação por meio de uma operação subsuntiva, desde que para a hipótese o administrador estivesse autorizado a encontrar uma solução justa para o caso. A situação, contudo, se agravou na esfera das transgressões disciplinares não especificadas2 , ou seja, aquelas que não são tipificadas e onde o legislador deixa de descrever pormenorizadamente a conduta transgressional.

 

Em outras palavras, o que é não especificado não é a transgressão disciplinar, de sorte que a peça acusatória no processo administrativo disciplinar militar deve conter a exata especificação do que foi imputado, isto é, a conduta proibida com conteúdo de reprovabilidade3 . O conteúdo transgressional, portanto, acaba por ser preenchido pelo aplicador que se transforma em legislador.

 

Exemplo vivo disso são as transgressões disciplinares em que todas as ações ou omissões não especificadas, praticadas contra as leis, as instituições, os símbolos nacionais, contra a dignidade da classe, contra os preceitos da subordinação e regras de conduta, não são especificadas em sede de imputação objetiva da transgressão.

 

Como se nota, o conteúdo da portaria inicial do procedimento administrativo disciplinar militar, nestes casos, é completamente indeterminado e o acusado só saberá a posteriori qual a valoração de proibição que será imputada ao seu comportamento.

 

Trata-se de violação ao princípio da taxatividade administrativa militar que exige que as transgressões disciplinares se encontrem previstas também em normas anteriores, porquanto tais normas determinem com clareza os contornos de razoabilidade do enquadramento e os limites dos fatos puníveis.

 

No entanto, contraditoriamente, o artigo art. 33 da Lei Complementar Estadual n.º 893, de 09 de março de 2001, determina que na aplicação das sanções disciplinares serão sempre considerados - em infrações disciplinares militares - a natureza, a gravidade, os motivos determinantes, os danos causados, a personalidade e os antecedentes do agente, a intensidade do dolo ou o grau da culpa.

 

Ora, é impossível determinar-se os motivos determinantes em sede de transgressão disciplinar não especificada, haja vista que indeterminável a base de sustentação da imputação já determinada: o enquadramento da conduta especificada no próprio tipo administrativo transgressional militar não especificado.

 

Lembre-se, desde logo, que os litigantes em processo judicial ou administrativo e os acusados em geral têm direito de saber a exata descrição da conduta que a eles se imputa como garantia de exercício do contraditório e da ampla defesa, já que ninguém pode defender-se do que não é especificado, não delimitado.

 

Portanto, não se concebe que o administrador seja transformado em legislador e não se concebe, também, que esta metamorfose possa criar figuras típicas segundo seu prazer ou ódio, por seu sentimento ou sensação de aversão profunda ao mundo, à realidade, e aos integrantes da corporação castrense, deixando em plena insegurança jurídica o administrado, policial militar, que a qualquer momento pode ser punido pelo mero capricho do detentor do poder disciplinar.

 

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1Cfr. ODETE MEDAUAR. A processualidade no direito administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993; ELIEZER PEREIRA MARTINS. Direito administrativo disciplinar militar. São Paulo: Editora de Direito, 1996.

2Cfr. art. 12 da Lei Complementar n.º 863, de 09 de março de 2001.

3Cfr. ELIEZER PEREIRA MARTINS. op. cit. p. 151; Idem, Segurança jurídica e certeza do direito em matéria disciplinar - Aspectos atuais, in Fórum Administrativo - Direito Público, 2003. pp. 1747.

 

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* Advogado do escritório Pereira Martins Advogados Associados

 

 

 

 

 

 

 

 

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