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Nova previdência: um novo retrocesso social

Angelo Antonio Alencar dos Santos

Para que concluamos se a "nova previdência" é compatível ou não com o Estado Democrático de Direito Nacional, necessariamente deveremos recorrer à indivisibilidade dos direitos humanos sob a ótica da dignidade da pessoa humana.

sexta-feira, 26 de abril de 2019

Atualizado em 24 de abril de 2019 16:38

Muito se tem discutido no seio dos órgãos de direção política, bem como na ampla mídia, a premência da "nova previdência". Um "mal necessário" destinado a destravar a economia nacional, bem como garantir a própria perpetuidade dos atuais regimes previdenciários às futuras gerações. Mas qual o preço a ser pago para que haja a "supremacia do interesse público"1? Em termos mais claros, o poder constituinte derivado reformador, por meio do Projeto de Emenda Constitucional 6 de 2019, poderia esvaziar a Carta Magna de direitos sociais (com destaque aos previdenciários e, indiretamente, alguns trabalhistas)? Isso se coadunaria ao Estado Democrático de Direito Nacional?

Para que concluamos se a "nova previdência" é compatível ou não com o Estado Democrático de Direito Nacional, necessariamente deveremos recorrer à indivisibilidade dos direitos humanos sob a ótica da dignidade da pessoa humana. Isso porque, um ordenamento jurídico, dito como democrático, esfacela suas bases de sustentação ao protagonizar os direitos civis e políticos, simultaneamente em que marginaliza os sociais, econômicos e culturais, retratando-os como empecilhos ao desenvolvimento nacional.

O próprio preâmbulo da Carta Magna é cristalino ao estabelecer que a instituição do então Estado Democrático é destinada a assegurar o exercício, dentre outros direitos fundamentais,   dos direitos sociais como valores supremos da sociedade (BRASIL, 1988). Por sua vez, o valor-fonte dos direitos sociais advém da dignidade do ser humano, não incluído pelo constituinte de 1988 no rol dos direitos e garantias fundamentais, mas positivando-o na "condição de princípio jurídico-constitucional fundamental." (SARLET, 2019, p. 79).

O presente debate apesar de aparentar ser uma realidade de um "país subdesenvolvido" ou em desenvolvimento, não o é. Se na década de 60 do século passado, a Europa Ocidental vivenciava o apogeu do Estado de Bem-Estar (Welfare State), transcorrida pouca mais de uma década, tal modelo entrou em colapso, com reflexos até os dias atuais sobre a implementação de políticas públicas e produções normativas dos legisladores. Nesse cenário, prosperaram/prosperam profundos debates sobre a possibilidade de flexibilização dos direitos sociais ante recessões e crises econômicas.

Preciosas contribuições foram arguidas pelo constitucionalista português Canotilho (2003, p. 335-337), no qual após analisar as constituições europeias, constatou que a maioria integrou o princípio da sociabilidade como núcleo estruturante dos seus respectivos Estados Constitucionais Democráticos. Desse princípio, não recepcionado textualmente pela Constituição Portuguesa (PORTUGAL, 1974), como o fizeram os alemães, sucedem uma série de corolários lógicos. Inicialmente, a adoção do direito como instrumento de conformação social destinado ao alcance da igualdade real dos cidadãos, demonstrando o necessário entrelaçamento entre os direitos sociais com os civis. Ademais, do princípio do não retrocesso social, também chamado pelo autor de proibição da contrarrevolução social ou da evolução reacionária, a qual nos dedicaremos mais minudentemente.

Canotilho advoga a tese de que os direitos sociais e econômicos ao atingirem determinado patamar de realização, tornam-se, simultaneamente, uma garantia institucional e um direito subjetivo aos cidadãos. Portanto, a violação ao núcleo essencial dos direitos sociais, como ocorrerá na "nova previdência" brasileira, ao deslocar a aquisição e gozo de direitos previdenciários da Carta Magna para uma futura lei complementar, ensejaria uma inconstitucionalidade por aniquilar a justiça social2 (CANOTILHO, 2003, p. 339).

O Poder Constituinte Originário ao tecer analiticamente os direitos e garantias fundamentais, incluindo um vasto rol de direitos sociais, pretendeu justamente externar mandatos constitucionais juridicamente vinculativos com o fim de limitar a discricionariedade dos legisladores. Contudo, não há de se falar em um "engessamento" da norma fundamental em desprezo a variáveis históricas, culturais, geográficas e econômicas, já que há uma margem de liberdade de conformação dos direitos sociais, desde que o núcleo deles seja preservado. Nessa acepção, como a PEC 6/19 atingirá o núcleo de vários direitos sociais?

Antes de se tecer considerações com base nos questionamentos acima, frisa-se que não se defende uma concepção absoluta dos direitos sociais, incluindo os previdenciários, como se fossem imunes a quaisquer intervenções restritivas. Na verdade, preza-se por uma proporcionalidade, à luz da dignidade da pessoa humana e da sistemática protetiva de direitos fundamentais elencados na Constituição Federal (CF/88), pois somente assim o núcleo ssencial dos direitos sociais objetos de restrições será preservado.

Veja-se o contrassenso, se os regimes de previdência, tanto o próprio como o geral, apresentam fragilidades (as quais muitas, à luz da CF/88, ensejariam inconstitucionalidades por omissão), o que representará a desconstitucionalização deles? Muito mais do que aferir se o núcleo dos direitos sociais será preservado, na verdade, depara-se com um inevitável esvaziamento da eficácia jurídica das normas que os regem, as quais terão a própria segurança jurídica fragilizada, afinal poderão ser flexibilizadas com mais frequência pelos legisladores ordinários. Como harmonizar esse quadro com os objetivos fundamentais do ordenamento nacional?3

Apesar da CF/88 não ter expressamente positivado o princípio da vedação ao retrocesso social, semelhante aos portugueses, esse manifesta-se como um princípio constitucional implícito, logo, uma norma jurídica efetiva (e não um mero enunciado programático).4 Nessa perspectiva, converge o posicionamento de Sarlet (2012, p. 454-460) e Luís Roberto Barroso, quanto a esse último, ele sustenta que o princípio decorre do sistema jurídico-constitucional e após a regulamentação de um mandamento constitucional, o direito surgente incorpora-se ao patrimônio jurídico da cidadania e não pode ser suprimido (BARROSO, 2001, p. 158 apud SARLET, 2012, p. 454). 

Para os fins da presente exposição, não se aparenta salutar apontar todos os esfacelamentos de núcleos essenciais dos mais diversos direitos sociais atingidos pela "nova previdência", até porque já se evidenciou a maior das problemáticas, justamente o seu principal pilar: a desconstitucionalização preconizada nos novos arts. 40, § 1º e 201, § 1º ao retirar da competência constitucional a aquisição e gozo de direitos previdenciários, realocando-os em uma lei complementar. Diga-se de passagem, que a ideia da PEC 6/19 não é inovadora, buscando suas raízes na PEC 33, de 1995, a qual também almejou uma desconstitucionalização, mas essa fora mais contida nos seus termos (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1995, p. 43).

Pautado na sistemática internacional de proteção dos direitos humanos, bem como dos direitos fundamentais elencados na CF/88, torna-se uma obviedade que a dignidade humana somente é preservada em um cenário com segurança jurídica. A PEC 6/19 retira do §8º, do art. 40, bem como do § 4º, do art. 201, a previsão de reajustamento dos benefícios para preservar-lhes, em caráter permanente, o valor real. Da mesma forma, é suprimida a garantia de que a pensão por morte não será menor do que o salário mínimo (previsto, atualmente, no art. 201, § 2º).

Evidencia-se que as alterações acima ferem o princípio da proporcionalidade, na modalidade de uma proteção ineficiente, já que se antes era difícil conceber um substrato mínimo para uma vida digna, agora, quiçá, a própria sobrevivência dos aposentados encontra-se em risco seja pela acelerada desvalorização dos seus rendimentos, seja pelo agravo da insuficiência desses.5 Não se sabe se por atecnia, em convergência com os ideais da PEC, ou por sorte, o art. 37, inc. X, por ora foi mantido.

Outro ponto preocupante, ainda em desencontro com a segurança jurídica e afetando o seu núcleo essencial é a idade mínima para se pleitear o benefício. Essa, conforme os arts. 40, § 3º e 201, § 4º, englobando os dois regimes previdenciários, poderá ser alterada, a partir da regulação de futura lei complementar, sem exigência de uma nova lei, pelo parâmetro de aumento da expectativa de sobrevida da população brasileira.

Um grande retrocesso social, de mais de três décadas, remete-se a aposentadoria do trabalhador rural em regime de economia familiar. Se em 1988 a Carta Magna foi louvada justamente pela superação de um sistema assistencialista, pautando-se por um regime previdenciário universalista, inclusivo frente às peculiaridades do meio rural, ao conceder concretude ao abstrato princípio da cidadania (frente a clara marginalização dos trabalhadores rurais, quando comparados aos urbanos), tais ganhos se esvaem com a PEC 6/19. Na atual sistemática da PEC 6/19, com a nova redação do § 8º, do art. 198, complementado pelo § 8º-A, a aposentadoria do trabalhador rural em regime de economia familiar, no montante de um salário mínimo, será condicionada, definitivamente, ao recolhimento de contribuição sobre a produção comercializada, observado o valor mínimo anual, a ser fixado em lei (SENADO FEDERAL, 2019, p. 8-9).

Ainda quanto ao trabalho rural em regime familiar, um ponto fulcral é que mesmo não havendo produção, ele deverá recolher a contribuição para fins de manutenção da qualidade de segurado no regime, do cômputo do tempo de contribuição e carência. Segundo o art. 35, das disposições transitórias, até que lei fixe o novo valor, o valor mínimo anual de contribuição previdenciária do grupo familiar será de R$ 600,00 (seiscentos reais) (SENADO FEDERAL, 2019, p. 38).

As considerações acima, não exaustivas, mas exemplificativas, ilustram a face nefasta da "nova previdência" ao provocarem um amplo retrocesso social. Ao mesmo tempo, também, esfacela-se os princípios da proteção e da solidariedade social. O primeiro, ao se potencializar a vulnerabilidade dos hipossuficientes da sociedade brasileira, abandonando-os às mazelas do "risco social", afinal o Estado transparece indícios da sua falha para suportar as contingências necessárias para se garantir uma vida digna aos seus cidadãos. O segundo porque, segundo prescrito na redação do art. 115, inc. VII, não se prevê, pelo menos por ora, a obrigação de contribuição patronal, mas apenas do empregado ou servidor (SENADO FEDERAL, 2019, p. 14). Logo, a contribuição coparticipada da sociedade para o sustento dos seus cidadãos também dá sérios indícios de falência.6

Apesar das estratégias de marketing de retratarem as reformas nos sistemas previdenciários como uma "nova previdência", dissociando-se dos modelos anteriores, marcados por grandes contingenciamentos, tal proposta atual poderá concretizar, inexoravelmente, um amplo retrocesso social. Direitos sociais conquistados ao longo de décadas não somente são diluídos, como têm risco de perderem sua eficácia jurídica caso sejam transplantados da Carta Magna para uma futura lei complementar. A dignidade da pessoa humana, diretiva mestra dos demais direitos fundamentais, aparenta ser rebaixada como um mero valor ideológico, reinando-se uma ampla insegurança jurídica marcada pelos flagelos dos "riscos sociais".

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1 Em sentido complementar, incluindo a abordagem sobre os requisitos necessários para autorização de restrições aos direitos fundamentais, recomenda-se: (ABBOUD, 2011, p. 104-112).

2 Sob a mesma perspectiva de Canotilho, Sarlet acentua: "[...] a noção de um mínimo existencial na seara dos direitos sociais revela a íntima correlação entre os conceitos de dignidade da pessoa humana e de justiça social, de tal sorte que, se por um lado, a dignidade serve de fundamento e justificação para as exigências essenciais em matéria de justiça social, por outro se percebe que apenas mediante uma ordem institucional guiada por princípios de justiça social o respeito e a proteção de dignidade da pessoa humana poderão alcançar realização prática." (2019, p. 138).

3 "Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação." (BRASIL, 1988).

4 A respeito da função normativa dos princípios: (BOBBIO, 1994); (ALEXY, 1997).

5 Sob esse mesmo prisma de análise, o Benefício de Prestação Continuada (BPC) sofreu severas restrições, conforme se afere das novas redações ao art. 203, V e VI, § 1º, I e II; e art. 42, I, das disposições transitórias. O valor de 1 salário-mínimo foi mantido, mas restringido a pessoas com deficiência e idosos com mais de 70 (setenta) anos. Para os idosos com 60 (sessenta) anos ou mais, o benefício será reduzido para R$ 400,00 (quatrocentos reais). Mantendo-se, como requisito, a "condição de miserabilidade" (renda mensal integral per capita familiar inferior a um quarto do salário-mínimo e o patrimônio familiar inferior ao valor definido em lei, segundo disposições transitórias, no valor de R$ 98.000,00) (SENADO FEDERAL, 2019, p. 11, 12 e 39).

6 Para maiores aprofundamentos dos princípios constitucionais diretivos do Sistema Previdenciário brasileiro, recomenda-se a leitura: (ROCHA, 2004, p. 123-174).

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*Angelo Antonio Alencar dos Santos é presidente da Associação dos Magistrados do Maranhão.

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