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A pandemia do coronavírus e interpretação solidária dos contratos

Este cenário adverso fez com que as autoridades, tanto no exterior como no Brasil, recomendassem e adotassem medidas para promover o isolamento social das pessoas com o objetivo de conter a disseminação da doença

terça-feira, 7 de abril de 2020

Atualizado às 15:49

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O início do ano de 2020 foi marcado pela declaração, pela Organização Mundial de Saúde, da pandemia global do novo coronavírus, o Covid-19. Este surto que se iniciou nos povos asiáticos, escalou rapidamente atingindo diversos países, ocasionando pressão nos sistemas de saúde, no sistema econômico, mortes e demais consequências negativas, cenário este que ainda perdura e pode se agravar em diferentes localidades nas próximas semanas, como no Brasil.

Este cenário adverso fez com que as autoridades, tanto no exterior como no Brasil, recomendassem e adotassem medidas para promover o isolamento social das pessoas com o objetivo de conter a disseminação da doença, determinando, dentre outras medidas, a restrição de circulação em áreas públicas, fechamento de portas do comércio em geral (exceto os considerados como imprescindíveis). Da mesma maneira, o setor privado também se movimentou, promovendo medidas de proteção aos seus colaboradores, tais como restrições de viagens e locomoção, teletrabalho, no tanto quanto permitido em cada realidade de negócios.

Sob este prisma, inegável reconhecer o esforço conjunto da sociedade para a contenção da pandemia, assim como inegável reconhecer o impacto em todas as relações econômicas, sejam trabalhistas, de consumo, fiscais e, também o cumprimento dos contratos vigentes e futuros. A realidade dos fatos durante uma pandemia traz inúmeras incertezas e desequilíbrio nas bases negociais, ascendendo a discussão sobre a possibilidade ou não de revisão e cancelamento de ajustes contratuais que não consideravam tal evento imprevisível e inevitável, o Covid-19.

A imprevisibilidade e inevitabilidade acima ditas são a base do que do que é comumente conhecido como caso fortuito e força maior. Sem adentrar no mérito de sua diferenciação conceitual acadêmica, que não encontra uma unanimidade, fato é que a consequência jurídica para ambos é a mesma, ou seja, o devedor de uma obrigação contratual fica liberado dos prejuízos decorrentes de caso fortuito e força maior, desde que não tenha se responsabilizado pelo mesmo (como algumas espécies de seguros ou similares).

Embora a regra acima pareça simples, sua aplicabilidade prática tem contornos de complexidade. Isto porque, não basta uma declaração de pandemia para que automaticamente todos os contratos sejam considerados sob revisão ou, ainda, que possam ser cancelados. A aplicação depende, caso a caso, da análise de todas as relações que circundam aquela realidade, a fim de verificar a solução adequada e necessária para manter o equilíbrio de cada avença.

Particularizando os contratos civis privados, é de se notar que hoje em dia, ao menos no Brasil, está superada a visão clássica de que o quanto pactuado deve ser necessariamente cumprido não importando as circunstâncias. Ao contrário, diversas são as disposições da lei que força o intérprete de um contrato a analisar o contexto geral daquele negócio, a boa-fé, os costumes locais e, ainda a função social, ou seja, o impacto para além das partes naquele tipo de contratação ou interpretação. Em outras palavras, isto quer dizer que não haverá uma solução matemática que funcionará como regra geral.

O momento de pandemia reforça, sem dúvidas, os vetores de interpretação do direito privado. Todas as questões deverão ser observadas sob a ótica da eticidade, socialidade e operabilidade. Estes quesitos, trazidos pelo Código Civil de 2002 em harmonia com a Constituição Federal, impõe às relações privadas a observância da ética, proibindo obrigações desproporcionais ou que estejam de encontro com o quanto esperado na boa-fé e boa relação entre as partes. Ainda que eticamente construído, ainda é necessário que os valores coletivos se sobreponham aos valores individuais, tanto no cumprimento do contrato como em eventual revisão ou cancelamento destes, atendendo à socialidade. E por fim, a operabilidade, impondo a facilidade para na operação dos ajustes privados com aplicação simples do direito, eliminando barreiras e com liberdade de forma.

Considerando esta linha de raciocínio, qual seja, a constatação logo de início de que há base para revisão ou cancelamento de contratos em razão da pandemia, limitado à realidade dos fatos, e com ferramentas já existentes na lei para aferir tais condições, cabe agora avaliar o que fazer caso o caso se enquadre dentre aqueles passíveis de revisão ou cancelamento, ou seja, aqueles que realmente sofrem um impacto direto por conta da pandemia e não há como seguir nas mesmas bases de contratação sob pena de inadimplemento e agravamento da situação.

O primeiro passo será sempre o diálogo, não havendo espaço para o silêncio neste momento, qualquer que seja a parte contratante. O dever de boa-fé mostra que as partes envolvidas devem ativamente procurar entender a necessidade do outro e tudo aquilo que for negociado nestas bases, prevalecerá. É imprescindível neste momento, que não se sabe quanto perdurará, a transparência na condução dos negócios e a busca por uma repactuação. Por repactuação, leia-se, acordar novas bases, porém mantendo o ajuste no todo quanto possível - uma nova forma de entrega, de prestar os serviços, de realizar tarefas, diferentes condições de pagamento etc. Esta postura é preferível aos cancelamentos, de forma a um ajudar o outro neste momento que todos precisam.

Podemos entender isto como talvez um novo vetor interpretativo, qual seja, o da solidariedade, que certamente norteará as decisões judiciais que venham a ser proferidas em casos relacionados a pandemia. Interpretar solidariamente significa buscar o todo quanto o momento exige em termos de cooperação, eliminando barreiras para formalizações (e-mail, mensagem e até telefonema) e respeitando a restrição de circulação de cada um. Ainda que haja dependência de prazos e documentos públicos, ser solidário mostrará que as pessoas poderão fazer seus ajustes e, após pandemia, adotar os passos necessários, sem que isso represente qualquer invalidade ou ineficácia.

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*Paulo Henrique Gomiero é advogado em São Paulo.

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