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Responsabilidade criminal dos agentes públicos na atual condição do sistema prisional brasileiro

Não se desconhece o justificável sentimento de desprezo que a sociedade possui com a população carcerária, de forma que não se pretende minimamente adentrar a essas particularidades.

sexta-feira, 8 de maio de 2020

Atualizado às 09:39

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Vivemos um dos tempos mais difíceis da humanidade, talvez visto antes apenas na época da peste negra e das grandes guerras. Um vírus, denominado covid-19, que foi capaz de paralisar quase 100% das atividades humanas em torno de todo o território global. Uma pandemia que ensejou na paralização de empresas, competições esportivas, judiciários e até mesmo de nossas atividades normais, independentemente de raça, cor, situação financeira ou religião.

Nessa senda, volta à tona um assunto que há tempos já deveria ter sido resolvido por parte de nossos governantes, e que, agora, somente se agravará em face do atual momento: a condição desumana que vivem os detentos em nosso sistema prisional e as graves consequências de tal situação.

É manifestamente sabido que nosso sistema prisional está à beira de um colapso, o qual - segundo informações do Conselho Nacional de Justiça1 - possui uma população 3 (três) vezes maior do que pode suportar, com uma taxa de ocupação de 175%.

Ora, é evidente que essa superlotação ensejou a péssima qualidade de sobrevivência dentro dos estabelecimentos prisionais, os quais, conforme já foi noticiado em reportagem do programa Profissão Repórter, da Rede Globo2, e em documento emitido pela entidade de Direitos Humanas Conectas3, possuem, em diversos desses, celas insalubres, com a presença de ratos e baratas, além de comidas de péssima qualidade.

Tal condição - superlotação e condição desumana dos presos - só colaborou para a existência e disseminação de diversos tipos de doenças no sistema prisional brasileiro, principalmente a Tuberculose, Hepatite, HIV, Sífilis e, em questão de pouquíssimo tempo, certamente será a propalação do covid-19.

Nessa perspectiva, se analisarmos que - segundo o Portal do Senado Federal- a chance de um detento contrair Tuberculose é de 28 (vinte e oito) vezes maior que a população em liberdade, o que se dirá de um vírus (covid-19) altamente contagioso, que infectou grande parte da população mundial - com muito mais condição de higiene e salubridade - em menos de 3 meses?

E, ainda pior, uma doença que, conforme já noticiado pela Organização Mundial de Saúde, traz riscos enormes a indivíduos que já possuem graves doenças, ou seja, 50% da população prisional do país, segundo dados do Conselho Nacional do Ministério Público.5

E, assim, fica o questionamento: quem será responsabilizado pela situação degradante e pelas mortes que virão a ocorrer dentro do cárcere? Quem irá pagar a conta final da ocorrência de uma tragédia em um sistema que, segundo dados do CNMP, mais de 30% dos estabelecimentos prisionais não possuem assistência médica e mais de 50% dos óbitos são decorrentes de doenças?

Em 2017, o Supremo Tribunal Federal proferiu duas decisões - de repercussão geral - no âmbito dos recursos extraordinários 580252 e 841526, decidindo, respectivamente, acerca da responsabilidade de indenização pelo Estado de: (i) presos em situações degradantes; e (ii) detentos que venham a óbito dentro do cárcere.

Tais decisões foram proferidas em decorrência do "dever do estado" de garantir condições humanas aos detentos e assegurar a esses a sua integridade física, até mesmo em casos de suicídio ou homicídio, como foi o caso analisado no recurso extraordinário 841526, tudo amparado pelo artigo 37, §6, da Constituição Federal6.

Ocorre que, dessas decisões para cá, poucas mudanças foram realizadas pelo Estado e pelos seus agentes que atuam no sistema prisional nacional. Talvez, isso decorra do fato de que a Suprema Corte aplicou apenas a responsabilidade objetiva civil do ente público.

É cristalino, contudo, até mesmo pelo voto proferido pelo ministro Luís Roberto Barroso, no âmbito do recurso extraordinário 580.252, que "O estado assume uma posição especial de garante em relação aos presos, circunstância que lhe confere deveres específicos de vigilância e de proteção de todos os direitos dos internos que não foram afetados pela privação de liberdade, em especial sua integridade física e psíquica, sua saúde e sua vida".

Em complemento a tal circunstância, o artigo 13, do Código Penal, pune quem, por ação ou omissão, der causa a um resultado criminoso. O seu parágrafo 2º estipula como penalmente relevante a omissão quando o agente deveria e poderia agir para evitar esse resultado, incumbindo o dever de agir a quem: (i) tenha por lei a obrigação de cuidado, proteção e vigilância; (ii) assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; ou (iii) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado7.

Portanto, o Estado, através de seus agentes ou responsáveis, podem sim ser punidos criminalmente pelas lesões, mortes e disseminação de doenças que ocorram dentro do sistema prisional (obviamente se verificado o nexo de causalidade entre a sua conduta - comissiva ou omissiva - e o resultado suportado pelo preso).

É dizer, mesmo após a CPI do Sistema Carcerário - feita pela Câmara dos Deputados em 2019 - que demonstrou todas as suas mazelas, nada mudou no sistema carcerário, por parte de quem tinha poder para fazê-lo.

Sendo assim, os agentes do Estado, seja por ação ou por omissão imprópria (já que claramente assumem o dever de garante) não estão assumindo a responsabilidade que lhes cabe no sentido de se evitar situações catastróficas, principalmente em tempos de disseminação de uma pandemia.

Nesse mesmo sentido, não há como deixar de se trazer à baila a necessidade de responsabilização criminal dos funcionários públicos que trabalham no sistema prisional, máxime pelos diretores de presídios que, não raramente, encaminham dossiês ao Judiciário afirmando terem plenas condições de cuidarem dos detentos enfermos, camuflando situações ocorridas dentro daquele estabelecimento prisional.

Sem contar a responsabilidade de determinado agente que, eventualmente, tenha disseminado a doença dentro do sistema, considerando-se que existem quase 100 mil servidores, que transitam entre a população e os detentos, por vezes sem que sejam tomadas quaisquer medidas preventivas a impedir a sua disseminação.

Em arremate, não obstante seja certo que vivemos em um sistema carcerário falido, que não atinge minimamente a sua função ressocializadora, fomentada por uma política criminal de "inflação" da população carcerária, é tempo de pensarmos em novas medidas, deixando-se de lado os ideologismos.

Decisões corretas - mesmo que atrasadas - podem mudar até mesmo a disseminação descontrolada de um vírus, evitando dor e sofrimento para toda a sociedade. O primeiro passo foi dado pelo Conselho Nacional de Justiça, com a promulgação da recomendação 62/2020. Cabe aos agentes Estatais, a partir de então, primarem pela sua devida aplicação.

Não se desconhece o justificável sentimento de desprezo que a sociedade possui com a população carcerária, de forma que não se pretende minimamente adentrar a essas particularidades.

O que se está a chamar atenção é tão só a necessidade de que se deixe de lado qualquer tendência ideológica, política ou de vingança, no momento, em prol da vida humana.

E, portanto, se isso não ocorrer, que seja o Estado, a partir de seus agentes, punidos, até mesmo criminalmente, em Tribunais Pátrios e Internacionais, pela eventual ação ou omissão de suas decisões.

Afinal, como bem prega o ditado popular: "a lei é para todos!"

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6 Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional 19, de 1998)

§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

7 Art. 13 - O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido. (Redação dada pela lei 7.209, de 11.7.1984)

§ 2º - A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem:(Incluído pela lei 7.209, de 11.7.1984)

a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; (Incluído pela lei 7.209, de 11.7.1984)

b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; (Incluído pela lei 7.209, de 11.7.1984)

c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado. (Incluído pela lei 7.209, de 11.7.1984)

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*Gustavo Nascimento Gomes é advogado criminalista, membro do escritório Höfling Sociedade de Advogados

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