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Da confissão no acordo de não persecução penal

A confissão como exigência à proposta do ANPP (Direito Público subjetivo do acusado) equivale a renúncia do Direito ao silêncio, porque não dá opção de escolha ao acusado: ou confessa ou não recebe a proposta.

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Atualizado às 16:12

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Dentre as diversas inovações trazidas pela lei 13.964/19 - "Pacote Anticrime", destacamos o acordo de não persecução penal (ANPP), agora previsto no art. 28-A do Código de Processo Penal (CPP).

Trata-se de mais um instrumento da justiça consensual ou negociada, na linha dos institutos da composição civil, transação penal e suspensão condicional do processo da lei 9.099/95 e da colaboração premiada da lei 12.850/13.1

Dispõe o caput do art. 28-A do CPP que:

Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente: (destaques nossos)

Da simples leitura do dispositivo percebemos a importância do instituto e um problema incontornável que precisa ser discutido, qual seja, o requisito da confissão para que o acusado tenha Direito ao ANPP.

Por primeiro, é essencial que se estabeleça a natureza jurídica do instituto. Seguimos Aury Lopes Jr. e Paulo Rangel que entendem se tratar de um Direito Público subjetivo; veja-se:

Entendemos que - preenchidos os requisitos legais - se trata de um Direito Público subjetivo do imputado, mas há divergência no sentido de ser um "poder do Ministério Público" e não um Direito do imputado.2

Trata-se de um Direito subjetivo público de índole jurídico processual do investigado a realizar um negócio jurídico com o Ministério Público.3

Se a natureza jurídica é de Direito Público subjetivo, preenchidos os requisitos legais, deve o Ministério Público (MP) ofertar o acordo (dever) e pode o acusado exigi-lo, se lhe interessar e não lhe for oferecido (Direito).

Mas, seria a confissão formal e circunstanciada da prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 anos, um requisito legítimo e relevante à propositura do ANPP?

Entendemos que não e a seguir nos concentraremos em expor a razão da inconstitucionalidade e da inconvencionalidade da confissão como critério para o ANPP.

O art. 5º, inciso LXIII da Constituição Federal (CF) consagra o Direito ao silêncio como um Direito fundamental, nesses termos: "o preso será informado de seus Direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado" (destaques nossos).

Já o art. 8.2, "g" do decreto 678/92 (Convenção Americana de Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica) prevê:

Garantias Judiciais

(...)

2. Toda pessoa acusada de delito tem Direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem Direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:

(...)

g) Direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada (destaques nossos)

Na mesma linha de proteção, dispõe o art. 14.3, "g" do decreto 592/92 (Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos) que:

3. Toda pessoa acusada de um delito terá Direito, em plena igualmente, a, pelo menos, as seguintes garantias:

(...)

g) De não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada. (destaques nossos)

Da análise das normas transcritas, Nereu Giacomolli ensina que:

Embora o art. 5º, LXIII, da CF faça referência ao Direito ao silêncio da pessoa ao ser presa, tal garantia se estende a todos os suspeitos ou acusados, em todas as situações processuais. Ademais, o nemo tenetur se detegere, como gênero, do qual o Direito ao silêncio é espécie, pode ser inferido do devido processo constitucional, bem como do estado de inocência (...)

Enquanto o nemo tenetur abarca o Direito de não produzir ou colaborar na produção de quaisquer provas (...), o silêncio atinge o Direito de o imputado não declarar. Portanto, o Direito ao silêncio constitui-se em espécie do nemo tenetur (...)

Ninguém está obrigado a se autoacusar, asseverava Hobbes em seu Leviatã. A confissão, já advertia Carmignani no século XIX, não pode ser considerada como prova do fato. Ninguém poderá, legitimamente, ser compelido a produzir provas para incriminar-se, para autoincriminar-se, na medida em que há de ser respeitada a vontade de permanecer em silêncio, de não agir, de não colaborar.

(...)

O nemo tenetur e o Direito ao silêncio não são Direitos absolutos, mas qualquer restrição há de estar prevista em uma lei adequada à convencionalidade e à constitucionalidade, ou seja, que não elimine ou afete o conteúdo essencial do Direito restringido (...), mediante as reservas legal e jurisdicional.4

Ainda, ao comentar o art. 8.2, "g" do decreto 678/92, didaticamente, o saudoso Luiz Flávio Gomes assevera que:

O Direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada faz parte do princípio da não autoincriminação, que envolve:

(a) o Direito ao silêncio ou Direito de ficar calado - CF, art. 5º, LXIII (é a manifestação passiva da defesa);

(b) Direito de não declarar contra si mesmo;

(c) Direito de não confessar - Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, art. 14.3; Convenção Americana, art. 8º, 2 e 3;

(d) Direito de mentir (...);

(e) Direito de não praticar qualquer comportamento ativo que lhe comprometa (ou que lhe prejudique) (...);

(f) Direito de não produzir nenhuma prova incriminadora que envolva o seu corpo humano (...).

(...)

Como se vê, o acusado tem todo Direito de não falar nada (Direito ao silêncio); se falar, tem o Direito de nada dizer contra si mesmo; mesmo dizendo algo contra si, tem o Direito de não confessar. A confissão, por sinal, só constitui prova válida quando for espontânea.5

Por fim, eixo interpretativo deveras importante do Direito ao silêncio é o da proteção da garantia, segundo o qual nenhum prejuízo pode ser imposto àquele que exerce seu Direito constitucional de não autoincriminar-se.6 Aliás, é exatamente esta a dicção legal contida no parágrafo único do art. 186 do CPP, in verbis:

Art. 186. Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu Direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas.

Parágrafo único. O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa. (destaques nossos)

À luz da interpretação do texto constitucional e convencional supracitados e com base nas lições doutrinárias trazidas, entendemos que o requisito confissão para o ANPP elimina por completo o conteúdo essencial do nemo tenetur se detegere, uma vez que não se pode violar um Direito (silêncio) para se conceder outro Direito (ANPP).

Se nenhum prejuízo pode ser imposto àquele que exerce o seu Direito Constitucional de não autoincriminar-se, igualmente nenhum Direito lhe pode ser tolhido por não confessar.

Cremos que uma lei infraconstitucional (CPP) não pode eliminar o disposto nos arts. 5º, inciso LXIII da CF (norma fundamental); 8.2, "g" do dec. 678/92 (norma supralegal) e 14.3, "g" do dec. 592/92 (norma supralegal), impondo a confissão da parte mais fraca (acusado) como critério para celebração do negócio jurídico, porque tais normas são cogentes ou de ordem pública, logo inderrogáveis.

Não há espaço para negociação no que se refere ao Direito ao silêncio. O acusado confessa se quiser (faculdade), não pode ser compelido pela lei a fazê-lo para obter um Direito, sob pena de eliminação do conteúdo essencial de outro Direito: ao silêncio.

Outrossim, não pode o acusado sofrer qualquer prejuízo se não confessou e preenche todos os demais requisitos legais para o acordo (in casu, o prejuízo de não receber a proposta de ANPP).

A confissão como exigência à proposta do ANPP (Direito Público subjetivo do acusado) equivale a renúncia do Direito ao silêncio, porque não dá opção de escolha ao acusado: ou confessa ou não recebe a proposta.

E, mais, nunca haverá a voluntariedade exigida para homologação do acordo no § 4º do art. 28-A do CPP, uma vez que o beneficiário é obrigado a confessar para obter a proposta. Logo, se a confissão é obrigatória, porque requisito para o ANPP, falar em voluntariedade é ilusão.

Além disso, a previsão legal da confissão como critério para o ANPP também equivale a uma forma de coação (vício do consentimento), porque não é livre nem espontânea. É, na verdade, uma exigência (logo, não é absolutamente voluntária) para só daí o acusado fazer jus à proposta de um acordo por parte do MP, caso preenchidos os demais requisitos legais do art. 28-A do CPP.

Ora, como o acusado exercerá o seu Direito de não autoincriminar-se se é obrigado a confessar para que lhe seja garantido outro Direito seu (ANPP)?

Entendemos que a questão é irrespondível.

Portanto, a confissão, como requisito positivo7 do ANPP (art. 28-A, caput do CPP), é inconstitucional e inconvencional, porque:

1. Viola o núcleo essencial do Direito fundamental previsto no art. 5º, LXIII da CF (Direito ao silêncio);

2. Elimina o conteúdo essencial do Direito previsto no art. 8.2, "g" do dec. 678/92 c/c art. 14.3, "g" do dec. 592/92 (Direito de não confessar);

3. Por consequência das premissas 1 e 2, afronta o nemo tenetur se detegere;

4. Vulnera normas cogentes, quais sejam, art. 5º, LXIII da CF; art. 8.2, "g" do dec. 678/92 e art. 14.3, "g" do dec. 592/92;

5. Exige a violação de um Direito Público subjetivo do acusado (Direito ao silêncio)8 para concessão de outro Direito Público subjetivo do acusado (ANPP);

6. Equivale a renúncia de um Direito irrenunciável, pois é exigência obrigatória abrir mão do Direito de não confessar (não é uma opção do acusado) para fazer jus a outro Direito (ANPP);

7. Equivale a coação (vício do consentimento), tendo em vista que o acusado é obrigado a confessar para receber a proposta de acordo.

Por consequência, é imperioso que se declare a inconstitucionalidade com a redução do texto9 do art. 28-A, caput do CPP, a fim de se excluir a exigência do requisito confissão formal e circunstanciada para a proposta do ANPP.

No mais, importa ressaltar que o instituto similar da transação penal (art. 76 da lei 9.099/95) não exige a confissão do fato criminoso como requisito à sua propositura, devendo ser observada a mesma sistemática para o ANPP.

Possivelmente, a tese da inconstitucionalidade da confissão como critério obrigatório à propositura do ANPP demorará para vingar (se é que vingará). Assim, é necessário que se diga que a atuação do advogado deve sempre se pautar no agir estratégico e, considerando a justiça negociada, adquire ainda mais relevo utilizar os ensinamentos da teoria dos jogos aplicada ao processo penal de Alexandre Morais da Rosa.10

No que toca o ANPP é primordial que o advogado sopese com seu cliente os efeitos da confissão para obtenção do acordo para definir a estratégia defensiva e traçar as melhores táticas, a fim de maximizar os payoffs.11

É fundamental considerar os efeitos cíveis e administrativos que podem decorrer da aceitação do ANPP, uma vez que ainda que entendamos inconstitucional, a confissão da infração penal é requisito previsto em lei e os acordos possivelmente só serão celebrados e homologados com ela.

Deve ser considerado, ainda, que o Juiz pode recusar a homologação do ANPP (§ 8º do art. 28-A do CPP), bem como que, em caso de descumprimento, o acordo será resolvido e oferecida a denúncia (§ 10 do art. 28-A do CPP). Outrossim, a vítima sempre será cientificada do acordo e de seu descumprimento (§ 9º do art. 28-A do CPP).

Assim, sendo certo que houve confissão da culpa, a condenação é certa12 e os "efeitos extrapenais" podem acarretar enormes prejuízos. Sobre os efeitos deletérios cíveis da confissão remetemos o leitor ao brilhante artigo do advogado Lorenzo Moreira Alves.13

Ainda que, no nosso entender, a confissão exigida para o ANPP seja inconstitucional e sua obtenção ocorra mediante vício do consentimento (coação), vez que é obrigatória e retira a plena capacidade de escolha do imputado, fato é que a infração penal restará confessada.

Inúmeras problemas decorrem daí, tais como os efeitos da confissão em instâncias independentes (cível e administrativa); as falsas confissões para se livrar do mal da investigação preliminar e/ou do processo-crime que, em seus cursos naturais, já vão punindo para, ao final, descobrir se deve-se ou não processar/punir etc.

Fugindo um pouco do tema proposto, a bem da verdade é que além de inconstitucional e inconvencional a confissão do ANPP não pode ser utilizada para qualquer fim nem pode gerar efeito algum, porquanto viola o Direito ao silêncio e é obtida mediante vício do consentimento (coação), logo é absolutamente nulo o ato de colheita da confissão e constitui prova ilegal a sua utilização para o convencimento do magistrado.

Aliás, todos os atos e termos que registrem a confissão devem ser desentranhados dos autos e inutilizados, bem como proibida qualquer menção relativa à confissão do acusado e, por fim, o juízo que teve contato com a confissão deve ser considerado contaminado e proibido de oficiar no feito.14

Regressando ao tema proposto: em suma, exigir a confissão para só aí ser cabível a proposta de ANPP é absolutamente inconstitucional e inconvencional por violação ao nemo tenetur se detegere, devendo o texto do art. 28-A, caput do CPP sofrer redução parcial para excluir tal requisito e ficar conforme à CF e os Pactos Internacionais.

É preciso constitucionalizar o pensamento e entender de uma vez por todas Evandro Lins e Silva: "Na realidade, quem está desejando punir demais, no fundo, no fundo, está querendo fazer o mal, se equipara um pouco ao próprio delinquente."15

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1 MADEIRA, Guilherme Dezem; SOUZA, Luciano Anderson de. Comentários ao Pacote Anticrime: Lei 13.964/19. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. p. 103.

2 LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2020. p. 221.

3 RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 28. ed. São Paulo: Atlas, 2020. p. 194.

4 GIACOMOLLI, Nereu José. O devido Processo Penal. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2017. p. 228-232.

5 GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos: pacto de San José da Costa Rica. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2013. p. 141-142.

6 Anotação de aula ministrada pelo Professor Thiago Bottino no curso Direito Penal e Econômico da FGV.

7 MADEIRA, Guilherme Dezem; SOUZA, Luciano Anderson de. Op. cit. 103.

8 Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho afirma que o Direito ao silêncio constitui um Direito Público subjetivo, in: CANOTILHO, J. J. Gomes. et al. 2. ed. São Paulo, Saraiva, 2018. p. 490.

9 Ver: STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. 507; STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso. 6. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 633-635.

10 ROSA, Alexandre Morais da. A teoria dos jogos aplicada ao Processo Penal. 2 . ed. Rei dos livros, 2015.

11 ROSA, Alexandre Morais da. Op. cit. p. 47-48.

12 Sejamos realistas, ainda mais considerando a suspensão sine die da eficácia dos novos dispositivos do CPP que preveem a implantação do Juízo das Garantias e a proibição do Juiz contaminado por prova declarada inadmissível proferir sentença: com a confissão será buscado tão somente o viés confirmatório, é dizer a certeza da culpa será pressuposta e serão buscados elementos que confirmem esta certeza. A narrativa, pois, será adequada à decisão já tomada.

13 Ver: ALVES, Lorenzo Moreira. Os efeitos cíveis do acordo de não persecução criminal no Direito Penal Empresarial. Disponível clicando aqui. Acesso em 22 de setembro de 2020.

14 É preciso estudar a teoria da dissonância cognitiva de Bernd Schunemann difundida por Aury Lopes Jr. in Op.cit. p. 77-80, afinal a imparcialidade tem que ser assegurada, não sendo possível "desver" (sic) o já visto.

15 LINS E SILVA, Evandro Cavalcanti. O salão dos passos perdidos. 3ª impressão. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1997. p. 219 cf. Eros Grau, in: HC 84078, relator(a): EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 5/2/09, DJe-035 DIVULG 25/2/10 PUBLIC 26/2/10 EMENT VOL-02391-05 PP-01048.

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t*Arthur Martins Andrade Cardoso é especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Membro voluntário do Instituto Pro Bono (IPB). Colaborador voluntário do Instituto Luiz Gama (ILG). Advogado do escritório Asseff & Zonenschein Advogados.

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