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Apresentando o juiz das garantias

Uma melhor distribuição de tarefas no processo penal com maior proatividade das partes - O juiz das garantias é representa uma revolução do sistema processual, conferindo maior participação e responsabilidade às partes.

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Atualizado às 11:21

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

O pacote anticrime, lei 13.964, de 24 de outubro de 2019, introduziu, na ordem processual, o juiz das garantias. A compreensão deste sistema é simples: as funções judiciais de exame da legalidade de medidas cautelares e invasivas na fase de investigação são realizadas por um juiz; a instrução e julgamento do processo são empreendidos por outro. O juiz que autoriza as medidas coercitivas pré-processuais (cautelares e invasivas) não é o mesmo que instrui e julga, muito embora não haja impedimento que este último, mediante prévio requerimento, as autorize.

Trata-se de um único processo e que tramita em uma mesma instância. O juízo e a instância são unas. Instâncias são graus hierárquicos recursais. Não há recurso do juiz das garantias para o juiz de instrução. A instância de ambos magistrados é a mesma.

Não obstante criado e regulado por alguns poucos dispositivos normativos, configura uma profunda transformação da persecução criminal. É um salto em direção à efetividade da justiça criminal, a qual consiste, grosso modo, na absolvição dos inocentes e condenação dos culpados, ou seja, na proteção de dois princípios constitucionais fundamentais integrantes da relação processual: a garantia individual e a segurança pública. Enfatizamos: o ganho de efetividade é real para os dois princípios. A codificação de 1941 é o procedimento selvagem. O juiz das garantias representa sua domesticação. É a relação processual civilizada. O Código de Processo Penal, embora date de 1941, foi, no curso dos anos, sendo modificado, adaptando-se aos novos tempos e novas realidades. Seu aprimoramento tem sido constante. Não é um texto desatualizado, muito embora necessite de algumas alterações, especialmente na parte recursal - o que não nos parece tarefa difícil -, e de revogação expressa de alguns dispositivos que já se encontram tacitamente revogados. O juiz das garantias ingressou no trem de refinamento da norma processual. Com nomenclaturas diversas, já se encontra em prática em diversos países, entre os quais, Itália, Portugal, França, Alemanha, México, Chile, Paraguai e Colômbia. Não é, por conseguinte, inovação nacional. Sabe-se que a circunstância de um instituto estar em vigor em outros países não constitui certificado de eficiência. É preciso colocá-lo a funcionar para saber de seus defeitos e qualidades. A advertência que convém fazer é a de que devem ser afastadas dessa avaliação as motivações políticas e ideológicas, dado que elas, vaporizando a lógica, aniquilam o pensamento jurídico.

O juiz das garantias não é e não pode ser proativo. É governado pela inércia. Já se tem a polícia e promotor investigando. Este último, é preciso destacar, o fazendo anomalamente quando não se trata de delito cuja investigação policial possa ser prejudicada por influência econômica ou política (o MP só está autorizado a investigar quando presente a probabilidade de influência política/econômica na investigação policial - jurisprudência distinta vige em 2020). Seria um exagero colocar mais um, o juiz, para exercer essa função. Juiz liderando investigação é a antijurisdição, a negação da função processual, a usurpação da função policial.

Juiz das garantias não é um juiz investigador. Menos ainda juiz defensor do investigado. Esse nome, juiz das garantias, tendo em conta esses tempos sombrios de hermenêutica populista (2020), não foi boa escolha. Não representa o que ele realmente é. Dá margem à equivocada compreensão de que o juiz irá se limitar a proteger direitos do acusado, mantra do catálogo de estultices ideológicas. O juiz das garantias não apenas avalia se o requerimento feito pela autoridade investigadora não viola a legislação como também autoriza medidas invasivas e impõe cautelares, entre as quais a prisão provisória. Ao autorizar medidas invasivas e determinar a prisão, não está se limitando a observar regras de garantia, mas também normas de segurança pública garantistas da coletividade. Ele acende duas velas, uma para a garantia, outra para a segurança. Por essas razões, a terminologia selecionada não foi apropriada. Juiz das garantias é vocábulo que expressa apenas um aspecto de sua atuação, a de garantia. Não revela sua ação em prol do coletivo, aquela que concede efetividade à regra constitucional da segurança pública, dever do Estado e direito do cidadão. Melhor batismo teria sido se fosse dado o nome juiz de legalidade. Expressaria melhor quem ele é realmente.

O sistema de juiz das garantias não afasta a instrução processual da busca da proximidade da verdade. A verdade que se busca no processo não é toda a verdade. Toda a verdade, em princípio, não interessa. O que realmente se passou não tem relevância. A verdade que interessa ao processo é só aquela que se presta para determinar se a hipótese delitiva descrita na inicial é, ou não é, verdadeira. O processo busca a verdade enquanto fim imediato. O objetivo mediato, ou finalidade última, é a de obter comprovação negativa ou positiva da hipótese delitiva descrita na denúncia. Em termos mais precisos, busca-se determinar se as provas autorizam a convicção de que a hipótese delitiva descrita na inicial constitui história. O processo busca a verdade, mas como ela é incognoscível, se satisfaz com a convicção. Os autos do inquérito ficam acautelados na secretaria à disposição do Ministério Público e da defesa. Pode o juiz acessá-lo diretamente? Não. Pode acessar por intermédio das partes? Sim. Conforme nossos comentários no título Destino da documentação da investigação, em comentários ao artigo 3º-C, parágrafo 4º do CPP, as partes poderão juntar peças do inquérito ao processo após o final da instrução. O pedido de juntada deverá ser acompanhado de fundamentação. Deverá ser explicitada a relevância probatória dos documentos cuja incorporação aos autos é requerida, sob pena de, na ausência de fundamentação, o pedido ser indeferido (salvo a obviedade das razões do requerimento expressa pelo próprio documento). Essa interpretação funda-se na circunstância de que os autos estão acautelados, ou seja, guardados, apartados, para não serem anexados em sua totalidade, mas só naquilo que for efetivamente útil. Assim, o juiz não fica afastado da totalidade relevante da prova. Nos comentários ao artigo 3º-C, parágrafo 4º no título Destino da documentação da investigação, explicamos as razões pelas quais a prova indiciária do inquérito pode ser importante tanto para a defesa como para a acusação, vale dizer, para a realização de justiça, com prestígio à garantia e à segurança. Essa tese não ofende postulados garantistas. Ao contrário, pois é com base nas contradições das declarações das testemunhas, as lançadas na investigação e na instrução, que, muito comumente, a defesa sustenta sua tese. Melhor dizendo, é examinando e comparando esses depoimentos que a Justiça pode se aproximar mais seguramente da verdade.

Perceba-se um dado importantíssimo: as partes, em especial o promotor, precisam intensificar sua proatividade, se comparado com o sistema anterior. O juiz cessa de exercer funções que definitivamente não são suas para, com serenidade e espírito repousado, julgar. O ganho para a imparcialidade é imensurável.

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*Flavio Meirelles Medeiros é advogado e palestrante.

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