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A luta antirracista na advocacia privada

Mesmo com o aumento das ações afirmativas para acesso à universidade e ao mercado de trabalho, permanece o abismo entre profissionais brancos e negros.

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Atualizado às 08:09

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

O Direito possui papel primordial na construção de uma sociedade justa e equitativa, em que seja, de fato, garantido a todas as pessoas o acesso a direitos fundamentais e a bens e serviços essenciais, com o objetivo de se "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação" (artigo 3º, I, da Constituição Federal). Afinal, de acordo com a Carta Magna, "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (...)" (artigo 5º, caput).

No entanto, para além do que preceitua a Constituição, a realidade brasileira é a de uma sociedade em que o racismo permeia todos os tipos de relações, inclusive as jurídicas. Com efeito, o que se observa no universo jurídico é um ambiente amplamente racista, materializado, por exemplo, no reduzido número de advogados e magistrados negros, na desvalorização de fontes de saber e de pensadores não ocidentais, no formalismo exagerado, na perpetuação das ideias de meritocracia e democracia racial, no pouco ou nenhum contato de estudantes e juristas com direito antidiscriminatório, na seletividade na aplicação de penas e na dificuldade em se enquadrar uma conduta no crime de racismo.

Assim, conceitos como racismo estrutural, institucional e epistêmico ganham contornos fora do papel e um arcabouço que deveria combater desigualdades acaba contribuindo para a sua manutenção e multiplicação, reforçando estruturas de poder que favorecem os brancos (os quais, salvo exceções, negam-se a admitir ou sequer conseguem entender o papel central de sua branquitude na obtenção de privilégios e na reprodução de opressões.

Exemplos recentes incluem a sentença proferida por juíza do Tribunal de Justiça do Paraná em que se lê que o réu "seguramente integrante do grupo criminoso, em razão da sua raça (...)" e a ação civil pública - instrumento processual que objetiva garantir a proteção de interesses coletivos - ajuizada pela Defensoria Pública da União contra o programa de trainee da Magazine Luiza direcionado para profissionais negros.

A alteração desse quadro deverá passar pelo aumento da representatividade negra no Direito. Para tanto, porém, um longo e tortuoso caminho ainda precisa ser trilhado.

Os desafios do advogado negro começam antes mesmo da faculdade, visto a maior dificuldade de acesso à educação formal de qualidade, desde o ensino primário, que reflete diretamente nas oportunidades profissionais. Focarei aqui na advocacia privada em razão da minha trajetória profissional, mas sei que muitas das minhas experiências também são partilhadas por aqueles que optaram por concurso público.

Mesmo com o aumento das ações afirmativas para acesso à universidade e ao mercado de trabalho, permanece o abismo entre profissionais brancos e negros, observado não apenas no processo seletivo, mas também nas oportunidades de desenvolvimento e nas demissões.

É praxe que anúncios de vagas em grandes escritórios exijam faculdade "de primeira linha" e inglês avançado, servindo como itens de eliminação de candidatos negros. E até aqueles que preenchem todos os requisitos, por vezes deixam de se candidatar para a vaga após entrarem no site ou no LinkedIn do escritório e perceberem a ausência de pessoas negras e/ou de programas de diversidade e inclusão voltados à equidade racial.

Voltando-nos aos escritórios de advocacia, sobretudo aqueles que despontam como líderes do mercado, é inegável a constatação de se tratarem de ambientes majoritariamente brancos onde, com menor ou maior frequência, os vieses (inconscientes e conscientes) se manifestam - de forma velada ou explícita - e, se não houver uma estrutura bem estabelecida para promoção da inclusão, dificilmente os profissionais negros se sentirão motivados para trabalhar ali.

Além disso, não são raras as vezes em que a presença do advogado negro em uma sala de reunião ou audiência é recebida com estranheza. Essa estranheza é especialmente acentuada quando tal advogado foge à estética branca que se convencionou associar à imagem de profissionalismo.

Em verdade, ainda hoje, muitos associam o negro à posição de subordinação e, quando ele se apresenta como um igual, três reações são comuns: o espanto, a repulsa ou o seu embranquecimento (este último é especialmente corriqueiro se a pessoa, como eu, não for retinta).

Por fim, em relação à adoção de programas de diversidade e inclusão por empresas e escritórios, registre-se que o processo de reconhecimento das discriminações sofridas pelas diferentes minorias e a percepção da necessidade de implementação de ações institucionais afirmativas devem ser construídos em bases sólidas para que concretamente surtam os efeitos desejados. Essa construção, contudo, não pode se limitar a endereçar separadamente as questões atinentes a grupos específicos, mas deve englobar uma avaliação do ponto de vista da interseccionalidade, isto é, de como se articulam os vários sistemas de opressão (racismo, sexismo, LGBTfobia...).

Ainda, ultrapassando o ambiente de trabalho, cabe um alerta sobre o quão essencial é a preocupação com a saúde mental da população negra, que é frequentemente sujeitada a violências psicológicas, mas sobre as quais muitos optam por se calar, seja por receio das consequências - como perder o emprego - ou por acreditarem que nada do que fizerem mudará a realidade.

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*Meg Ferreira Cirilo é associada de Direito Ambiental do escritório Tauil & Chequer Advogados.

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