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A responsabilidade civil pela redução de sociedade à insolvência: Análise da jurisprudência

O ordenamento jurídico brasileiro permite a responsabilização civil de um agente econômico por reduzir outro a um estado de insolvência? Neste artigo são analisados quatro precedentes sobre o tema.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Atualizado às 08:58

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

No constante esforço de acompanhar a evolução dos costumes sociais e das relações comerciais, o Poder Judiciário gradativamente reconhece novos interesses juridicamente relevantes e, portanto, merecedores de tutela.

A responsabilidade civil é, por vocação, campo fértil para essas novas pretensões, o que se explica pelo fato de estar erigida em cláusulas gerais,1 livre de amarras do dogmatismo, permitindo ao intérprete a contínua concepção de novas situações danosas, sempre à luz do ordenamento.

O presente artigo visa a abordar, brevemente, a potencialidade do surgimento na jurisprudência de nova e autônoma situação danosa em matéria de direito privado patrimonial, relacionada à possibilidade de responsabilização de um agente econômico por reduzir outro a um estado de insolvência (usualmente materializado no recurso ao regime da recuperação judicial ou decretação de falência).

Em outras palavras, seria admissível no ordenamento jurídico brasileiro a configuração de danos indenizáveis decorrentes da redução de determinado agente econômico à insolvência, em virtude da prática de ato ilícito? Seria essa uma espécie de dano autônoma em relação às modalidades já conhecidas pela doutrina e reconhecidas pelo Judiciário? Poderia o lesado ingressar em juízo para responsabilizar terceiro pelos prejuízos que incorreu devido à sua redução a um estado de insolvência, pressupondo que essa insolvência tenha sido causada por atos ilícitos praticados por este terceiro?   

Em algumas ocasiões o Poder Judiciário se debruçou sobre o tema, sendo pertinente a análise das conclusões alcançadas nos respectivos julgados.

A seguir, serão destacados quatro julgados nos quais sociedades empresárias ajuizaram ações buscando reparação por terem sido levadas por terceiros a uma severa crise financeira. Em um dos casos, a decisão final foi favorável à parte autora, enquanto os outros três acabaram por receber decisões finais de improcedência (dois deles no âmbito do STJ, que reverteu decisões favoráveis aos autores proferidas por tribunais estaduais).

No interessante caso "Coscarelli Construções", o TJ/MG deferiu a indenização pleiteada pela empresa autora, que havia falido, por concluir que o atraso no pagamento das parcelas de contrato celebrado com o Departamento Estadual de Obras Públicas ("DEOP") foi causa concorrente para a insolvência. Assim, o DEOP foi condenado ao pagamento de indenização proporcional aos danos experimentados pela Coscarelli em virtude de sua falência, danos estes calculados a partir dos bens alienados do patrimônio da construtora, além de lucros cessantes e danos morais.2 A construtora alegava, em síntese, que os reiterados inadimplementos do DEOP (consistentes em pagamentos feitos em atraso e sem correção monetária, em período de alta inflação) teriam lhe forçado a se endividar, o que resultou na sua falência. O acórdão do TJ/MG entendeu, a partir do laudo pericial, que diferentes causas teriam contribuído para a falência da construtora, dentre as quais o inadimplemento do DEOP - seriam, portanto, causas concorrentes. Por conta dessa concorrência de causas, ao calcular os danos devidos pelo DEOP em razão da falência da autora,3 o TJ/MG dividiu por 4 (quatro) os valores identificados pela perícia, referentes aos prejuízos com (i) alienação dos bens da falida por valor abaixo da média de mercado (danos emergentes); e (ii) perda de receita e margem de lucro (lucros cessantes). Segundo o acórdão, "levados em conta os vários fatores listados acima, afigura-se razoável seja condenado o requerido a arcar com 1/4 (um quarto) dos danos sofridos pela autora, por refletir proporcionalmente a participação do DEOP no processo que resultou no quadro falimentar". O TJ/MG também condenou o DEOP a indenizar a construtora por danos morais, em virtude do abalo à credibilidade da falida no mercado, danos estes arbitrados em R$ 250 mil, também "como sendo a quarta parte do prejuízo moral sofrido pela Construtora".

Por outro lado, foram identificados precedentes nos quais pedidos indenizatórios análogos foram julgados improcedentes,4 em razão, principalmente, das dificuldades apontadas para a verificação do nexo de causalidade.

No caso "Conslar vs. TV Calábria", a autora (Conslar) alegava que o descumprimento de um contrato de publicidade celebrado com a TV Cabrália teria desencadeado uma série de eventos lesivos, dentre os quais sua insolvência (liquidação extrajudicial). A sentença e o acórdão do TJ/BA julgaram procedente o pedido de indenização por danos morais e materiais, mas o STJ reformou o acórdão estadual a partir da aplicação do art. 403 do CC/2002, por considerar que não havia nexo causal entre os danos suscitados pela autora e o inadimplemento do contrato de publicidade.

Já no caso "Sguarezi vs. Sebrae", o Sebrae era réu em uma ação indenizatória, proposta por empresa que lhe imputava os danos oriundos de sua falência porque, segundo ela, o Sebrae elaborara um plano de viabilidade financeira equivocado que havia embasado uma expansão malsucedida. A indenização concedida pelo TJ/MT (danos morais, materiais e lucros cessantes) foi afastada pelo STJ, que concluiu pela ausência de nexo de causalidade direto e imediato entre o projeto entregue pelo Sebrae e a falência da autora, inclusive porque a própria falida havia elencado outros motivos para sua crise no pedido de falência, em especial a situação econômica do país em meados da década de 1990.

Por fim, no caso "Transbrasil vs. G.E.", a Transbrasil pleiteava indenização pelos danos oriundos de sua falência, que teria sido causada pelo protesto indevido de notas promissórias por parte da G.E. O TJ/SP julgou improcedente o pedido, sob o fundamento da ausência de comprovação do nexo de causalidade, ao argumento de que "não se pode concluir que a ré foi a responsável pela bancarrota da autora, que já vinha enfrentando dificuldades enormes".5

Como se vê, dos quatro precedentes identificados na jurisprudência, em apenas um a decisão final reconheceu o direito pleiteado pela sociedade reduzida ao estado de insolvência. De todo modo, mesmo nos casos em que as pretensões foram julgadas improcedentes, as decisões definitivas não se posicionam no sentido de que a responsabilidade civil nessas hipóteses seria inadmissível pelo ordenamento jurídico brasileiro.

A partir da análise desses precedentes, é possível concluir que as chances de êxito do autor dependerão essencialmente da sua capacidade de demonstrar o nexo de causalidade entre os atos ilícitos praticados pelo terceiro (uma vez caracterizados) e os danos por ele experimentados, consistentes nos prejuízos oriundos da crise econômica que lhe foi ocasionada.

Aplicando-se a doutrina6 e a jurisprudência do STJ7 a essa hipótese específica, isso significa que o autor terá o ônus de comprovar que o seu estado de insolvência foi consequência direta e imediata dos atos ilícitos praticados pelo terceiro (notadamente por meio de inadimplementos contratuais relevantes), ou ao menos que não tenha havido rompimento desse nexo causal. Deverá ser verificado um vínculo de necessariedade causal entre os atos ilícitos praticados e a crise econômica do autor.8 Em outras palavras, a atuação ilícita do terceiro deverá constituir causa "determinante" da insolvência da empresa autora.9

É esperado que se verifiquem, em determinados casos, causas concorrentes para a insolvência, ou seja, outros fatores, para além daqueles atos praticados pelo réu, que também tenham contribuído para levar o autor à crise econômica e à situação de insolvência, o que pode influenciar na verificação do nexo de causalidade. Deve-se ressaltar, contudo, que, segundo a jurisprudência, a verificação de concausas não necessariamente afasta a responsabilidade do agente (no caso, o réu) pela indenização dos danos causados à vítima (no caso, a empresa autora), mas leva a uma repartição/redução do dever de indenizar, já que o agente não é considerado o único causador do dano (CC, art. 945).10 Vide, a propósito, o caso "Coscarelli Construções", citado acima.

Como se vê, trata-se de rico e complexo debate, de alta relevância prática em tempos de crise econômica. Por meio desta singela contribuição, buscou-se apenas traçar um breve panorama do posicionamento jurisprudencial sobre o tema, bem como traçar os principais desafios ao intérprete no que diz respeito ao enquadramento teórico da questão. Espera-se, com isso, fomentar a discussão, que possui amplo potencial prático perante os tribunais.

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1 "No âmbito da responsabilidade civil em particular, a valorização do papel interpretativo das cortes e a inserção no debate jurídico de aspectos sociais, econômicos e éticos, antes marginalizados, parecem, enfim, preparar o caminho para transformações há muito esperadas. O novo Código Civil brasileiro, tão tímido em outros campos, trouxe, nesta matéria, inovações consideráveis, abrindo discussões em torno de novos problemas, e novas soluções, a dependerem mais da atuação do intérprete que do legislador" (SCHREIBER, Anderson. Novas tendências da responsabilidade civil brasileira. Acesso em 10.12.2020).
2 TJ/MG, 8ª CC, Ap. Cív. Nº 1.0024.10.065286-6/001, Rel. Des. Edgar Penna Amorim, j. 28.5.2015. O Recurso Especial interposto pelo DEOP não foi conhecido pelo STJ, conforme decisão transitada em julgado (AGREsp 977120 / MG). 
3 Vale destacar que, no caso "Coscarelli Construções", a autora buscava também a condenação do DEOP ao pagamento de perdas e danos diretamente decorrentes do inadimplemento do contrato celebrado entre as partes, além daqueles decorrentes de sua redução à insolvência.
4 Faz-se referências às seguintes ações judiciais: (i) "Caso Conslar vs. TV Calábria" (STJ, 3ª T., REsp 1630665/BA, Rel. Min. Moura Ribeiro, j. 23.5.2017); (ii) "Caso Transbrasil vs. G.E." (TJSP, 2ª C.D.P, AgRg 0272608-03.2009.8.26.0000/50001, Rel. Des. José Carlos Ferreira Alves, j. 13.5.2014); (iii) "Caso Sguarezi x Sebrae" (STJ, 4ª T., REsp 1154737/MT, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 21.10.2010).
5 O RE interposto pela Transbrasil não foi conhecido pelo STJ, conforme decisão transitada em julgado (AGREsp 819526/SP). 
6 "Apenas os danos diretos e imediatos sobrevindos da inexecução são indenizáveis. Com isso, conforme Clóvis do Couto e Silva, circunscreveu-se a possibilidade de pretenderem-se danos que não se relacionem diretamente com o evento. É esse, portanto, o critério jurídico estabelecido no Código Civil, que fixa um limite à responsabilidade por danos" (NANNI, Giovanni Ettore. In: Giovanni Ettore Nanni (coord.). Comentários ao Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2018, pp. 655-656). 
7 "Na aferição do nexo de causalidade, a doutrina majoritária de Direito Civil adota a teoria da causalidade adequada ou do dano direto e imediato, de maneira que somente se considera existente o nexo causal quando o dano é efeito necessário e adequado de uma causa (ação ou omissão). Essa teoria foi acolhida pelo Código Civil de 1916 (art. 1.060) e pelo Código Civil de 2002 (art. 403)."(STJ, 4ª T., REsp 1307032/PR, Rel. Min. Raul Araújo, j. 18.6.2013). 
8 Existem decisões recentes do STJ favoráveis à indenização por danos a rigor indiretos, desde que demonstrado o vínculo de necessariedade entre o ato ilícito e o prejuízo que se deseja ressarcir (v. por ex., STJ, AResp 1644179, Rel. Min. Moura Ribeiro, j. em 26.05.2020). Este entendimento também é adotado pela doutrina, que entende estar presente a necessariedade causal quando "o evento [danoso] é efeito necessário de certa causa" (TEPEDINO, Gustavo; TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Fundamentos do direito civil: responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Forense, 2020, pp. 86-87).
9 "À luz da teoria da causalidade adequada, prevista expressamente no art. 403 do CC/02, somente se considera existente o nexo causal quando a conduta do agente for determinante à ocorrência do dano. Precedentes." (STJ, 3ª T., REsp 1808079/PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 6.8.2019). 
10 "A concorrência culposa da vítima diminui a intensidade do nexo causal e, como consequência, reduz a parcela de responsabilidade do ofensor, nos termos do art. 945 do CC/02. [...] Pela causalidade adequada, a concorrência de culpas, que na verdade consubstancia concorrência de causas para o evento danoso, só deve ser admitida em casos excepcionais, quando não se cogita de preponderância causal manifesta e provada da conduta do agente. Precedentes" (STJ, 3ª T., REsp 1808079/PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 6.8.2019). Em outras palavras, diante de um cenário de causas concorrentes se impõe a individualização das diferentes condutas que concorreram para o dano, de forma a sopesar quanto cada uma delas efetivamente contribuiu para a sua verificação e extensão. Nesse sentido, doutrina e jurisprudência alertam para a necessidade de se alocar a indenização "proporcionalmente ao grau de culpabilidade de cada um dos envolvidos" (cf. CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 10ª ed. São Paulo: Atlas. 2012, p. 45, e, dentre muitos outros, TJSP, 25ª CDPriv, EDs nº 1000107-18.2017.8.26.0362, Rel. Des. Marcondes D'Angelo, j. 15.7.2019, e TJSP, 31ª CDPriv, AC nº 1002045-89.2017.8.26.0510, Rel. Des. Adilson de Araujo; j. 7.8.2018). 

 

Matheus Barcelos

Matheus Barcelos

Advogado de Contencioso e Arbitragem no escritório BMA - Barbosa, Müssnich, Aragão.

Guilherme Faoro

Guilherme Faoro

Advogado de Contencioso e Arbitragem no escritório BMA - Barbosa, Müssnich, Aragão.

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