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Aplicativos abutres afrontam o Estatuto da OAB

Embora esses aplicativos defendam sua atividade, inclusive, alegando promover o mercado jurídico em prol dos advogados, o que ocorre é justamente o contrário.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Atualizado em 12 de fevereiro de 2021 08:26

 (Imagem: Arte Migalhas.)

(Imagem: Arte Migalhas.)

Nos últimos anos, o consumidor brasileiro vem sendo exposto a armadilhas montadas por plataformas digitais, que estimulam os consumidores a ingressarem com ações judiciais contra empresas de determinados segmentos, em especial do setor de turismo, cobrando altos percentuais por possíveis valores a serem obtidos ou antecipando uma parte ínfima do valor de eventual condenação, através da cessão de créditos - sem mencionar o fato de que determinados direitos são personalíssimos, portanto, não passíveis de cessão.

Essas empresas incorrem em três ilegalidades principais, todas elas que são prejudiciais à sociedade como um todo: (i) abarrotamento do Poder Judiciário com a distribuição massificada de ações muitas vezes frívolas; (ii) enriquecimento ilícito às custas do consumidor; (iii) captação indevida de clientes, ao promover o exercício ilegal da advocacia

Por esses motivos, essas plataformas passaram a ser conhecidas como "aplicativos abutres", visto que a forma como atuam vai de encontro ao crescente movimento que acompanhamos na sociedade, que justamente é o de se promover a desjudicialização.  Tal movimento é uma preocupação expressa do legislador, que no advento do novo CPC/15, frisou a importância dos institutos que visam a mediação e a conciliação das partes.

Os aplicativos abutres têm estimulado a judicialização exacerbada, corroborando para o aumento de ações em trâmite no Poder Judiciário. Evidentemente, essa prática contribui em demasia para o descrédito da Justiça, no que tange o aumento de sua morosidade.

Além de afrontar o movimento perseguido por vários entes do Estado e da sociedade civil quanto ao estímulo das formas adequadas de resolução de controvérsias, essas plataformas ainda atuam de forma ilegal, com clara afronta ao Estatuto da OAB. Em que pese a proibição de que os serviços jurídicos não sejam mercantilizados, o que se vê na prática é a comercialização de serviços jurídicos através de sites e redes sociais, com ampla divulgação de publicidade explícita nas redes sociais, o que é inadmissível. Além disso, muitos dos aplicativos abutres se utilizam dos serviços de advogados contratados por elas em outros Estados, sem a devida inscrição de OAB suplementar. Ou seja, há a prática de concorrência desleal em cadeia, em volume maciço, violando-se dia a dia, hora a hora, os incisos III e IV do artigo 34 do Estatuto da Advocacia.

Essa prática é tão séria, que essa mercantilização ilícita, quando praticada por advogados (ao invés dos aplicativos abutres), pode levar à exclusão do profissional dos quadros da OAB (artigo 35 do Estatuto).

Uma vez verificada no processo tal prática de captação indevida de clientes, sem a ligação ética estabelecida entre o profissional e o consumidor, inclusive, com a atuação fora da área da inscrição daquele, há de se denunciar tais ocorrências não só ao juiz da causa como à seção local da OAB, visando a instauração dos procedimentos cabíveis.

O judiciário, uma vez provocado sobre essas questões, tem sido sensível às ilicitudes apontadas. Recentemente, a 7ª Câmara de Direito Privado do TJ/SP confirmou a a sentença de extinção do processo sem julgamento do mérito (Apelação Cível 1008641-59.2017.8.26.0132), visto que o Autor sequer conhecia o advogado que lhe representava, já que havia contratado os serviços de um aplicativo abutre. Assim dispôs a ementa desse acórdão:

AÇÃO INDENIZATÓRIA. Contrato Particular de Promessa de Compra e Venda. Alegação de vícios construtivos. Irregularidade da representação processual do autor. Demonstrada a captação irregular de clientes por parte do advogado que, por sua vez, possui mais de 5.000 ações distribuídas relacionadas à contratos de compromisso de compra e venda. Dúvida acerca da conduta do advogado. Decisão de acordo com o determinado no Comunicado 2/17, expedido pelo NUMOPEDE da Corregedoria Geral de Justiça deste E. Tribunal. Sentença confirmada. Recurso desprovido.

É muito esclarecedor o apontamento contido no relatório:

Não bastasse isso, chama atenção o fato do autor não conhecer pessoalmente o advogado, tendo sido procurado por meio de correspondência, prática que revela a captação irregular de clientes, nos termos do disposto no art. 34, inc. IV, da lei 8.906/94, incompatível com os deveres processuais do advogado.

O cenário atual, trazido pela pandemia de Covid-19, fez com que a atuação de advogados em diversas localidades fosse potencializada, inclusive, em outros Estados, o que sem dúvida pode ser considerado um avanço. Inclusive, muitas das inovações tecnológicas, tais como as audiências online, foram disponibilizadas pelo próprio Poder Judiciário. Porém, os aplicativos abutres se aproveitam dessa nova realidade, potencializando sua atuação com os mesmos profissionais, em os territórios nacionais, sem a devida inscrição suplementar.

Ao contratarem os aplicativos abutres, os consumidores costumam não ter qualquer contato com o advogado que lhe será indicado, e tais profissionais, integrantes da equipe desses aplicativos, acabem ingressando com processos nas mais diversas localidades, sem qualquer cuidado adicional, de se inscreverem nas seções locais da OAB respectiva (§ 2º do art, 10 do Estatuto), aproveitando-se das novas facilidades tecnológicas.  

Embora esses aplicativos defendam sua atividade, inclusive, alegando promover o mercado jurídico em prol dos advogados, o que ocorre é justamente o contrário: a violação em série do Estatuto da OAB que mostra que não só os consumidores são prejudicados com a expropriação de parte relevante de seu direito, assim como o Poder Judiciário e a própria advocacia com a mercantilização e a atuação desenfreada em todo o país, sem o devido registro na OAB local constituindo assim um quadro de concorrência desleal.

Tereza Cristina de Oliveira Ribeiro Vilardo

Tereza Cristina de Oliveira Ribeiro Vilardo

Sócia do escritório Lee, Brock, Camargo Advogados (LBCA).

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