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A educação pode ter um a conotação 'espiritual'?

Misturar educação com princípios religiosos é temerário, antiético, irresponsável.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Atualizado em 17 de fevereiro de 2021 08:15

 (Imagem: Arte Migalhas.)

(Imagem: Arte Migalhas.)

O ministro da Educação, sr. Milton Ribeiro, está respondendo inquérito no STF, pelo conteúdo de sua entrevista ao jornal 'O Estado de São Paulo', em que afirmou que o "homossexualismo é decorrente de famílias desajustadas". O STF pretende apurar se houve conteúdo homofóbico nessa fala, o que é tipificado como crime, semelhante ao racismo, desde junho/2019.

Em 24/01/21, em uma pregação para determinada igreja neopentecostal, da qual o sr. Ministro é pastor, ele afirmou que "Deus o colocou lá [como Ministro] para exercer seu papel [de modo] mais espiritual do que político". Segundo ele, "a Bíblia é que deve conduzir os valores da família, o que é certo e o que é errado". E que o inquérito do STF não é sobre corrupção, nepotismo, e sim por "defender o que a Bíblia diz e ponto final".

Esse discurso se afasta radicalmente do propósito da própria Educação, e dos valores inclusivos da sociedade, pelas seguintes razões:

1. Vivemos em um Estado laico. O que significa isso? Que o poder político (governamental) é separado do poder religioso (o que não acontece nos regimes totalitários fundamentalistas, como nos países do Oriente Médio, por exemplo!). Significa que o Brasil não adota nenhum princípio religioso específico no seu plano de governo. Acolhe todas as religiões, crenças, credos - e até quem opta por não ter nenhuma! Impor uma doutrina única e específica em exercício de poder é temerário, por desrespeitar quem segue outras doutrinas, ou nenhuma. Intolerância religiosa é crime, e em se tratando de ocupante de cargo público de governança, deveria ter a pena em dobro!

2. A Constituição assegura a ampla liberdade religiosa, ninguém pode ser discriminado por suas crenças (ou por não ter nenhuma). O sr. Ministro está se indispondo inclusive com a própria Constituição;

3. A Educação serve para incluir, não para doutrinar. Devemos ensinar nossas crianças a terem respeito e tolerância religiosa. Claro que não pode ser politizada, pois toda vez que se tenta politizar alguma área, as consequências são trágicas (veja-se o que está acontecendo com a Saúde, os desmandos na gestão pública dessa crise sanitária etc.). Mas utilizar a argumentação religiosa é uma manobra para escamotear uma doutrinação que contraria os princípios da nossa Educação. As consequências são imprevisíveis, e deixam sequelas por muito tempo.

4. O que embasa essa 'teoria científica' de que "homossexualismo é decorrente de famílias desajustadas"? Aliás, vou mais além, o que é 'família desajustada'? É aquela que 'não está na Bíblia'? Quando pensamos nas múltiplas configurações familiares que reforço aqui diariamente nos meus artigos, penso que o sr. Ministro "parou no tempo e no espaço", vive uma sociedade de séculos atrás, incompatível com a realidade atual. E alguém nessas condições não tem a menor condição de exercer um cargo de responsabilidade, de condução das nossas crianças, jovens e adolescentes - e adultos também, porque também temos o direito (ou diria, 'obrigação' de evoluir, através do aprendizado contínuo!).

Misturar Educação com princípios religiosos é temerário, antiético, irresponsável. A sociedade esclarecida, informada, precisa evoluir através da Ciência. Obviamente que nossos cientistas, pelo menos grande parte deles, não duvida da existência de Deus. Mas se deixássemos as coisas somente conforme os preceitos da Bíblia, não teríamos evolução tecnológica na Medicina, Informática, Economia, Engenharia... ainda estaríamos a mercê de doenças que hoje são curáveis ou pelo menos tratáveis, e teríamos superstições, crenças irracionais.

MOSCOVICI (2015) já afirmava que nossas representações sociais (isto é, nosso conjunto de crenças, valores, oriundos dos grupos sociais a que pertencemos) se torna tão "fossilizada", quanto menos desconhecemos sua origem. Reproduzimos acriticamente porque não sabemos de onde vieram. Aqui me parece ser o caso também: utilizar a doutrina religiosa como argumento para se sobrepor ao conhecimento científico. Sabemos as implicações disso, tivemos vários exemplos ao longo da História: das Cruzadas à Inquisição, do Holocausto às ditaduras do século XX...

A propósito, o termo mudou: não é mais 'homossexualismo' e sim 'homoafetividade'...

E estamos falando do mesmo sr. Ministro da Educação que, mesmo com a abstenção de 51,2% dos candidatos do ENEM 2021, afirmou que o exame "foi um sucesso"...

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GONÇALVES, A.B. STF e a criminalização da homofobia. Migalhas, 03/02/2020. Disponível aqui. 

MOSCOVICI, S. Representações sociais. Investigações em Psicologia Social. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 2015.

REDAÇÃO. PGR pede inquérito no STF contra ministro da Educação por suposta homofobia. Migalhas, 26/09/2020. Disponível aqui. 

REDAÇÃO UOL. Apesar de salas lotadas e abstenção alta, MEC diz que Enem foi um 'sucesso'. UOL, 17/01/2021. Disponível aqui.

TEÓFILO, S. Ministro diz que seu papel na Educação é mais espiritual do que político. Correio Braziliense, 26/01/2021. Disponível aqui. Acesso em: 30 jan. 2021.

Denise Maria Perissini da Silva

VIP Denise Maria Perissini da Silva

Psicóloga clínica e jurídica. Mestre em Ciências Humanas pela UNISA. Coordenadora da pós-graduação em Psicologia Jurídica. Colaboradora Comissões de OAB/SP. Autora de livros de Psicologia Jurídica de Família.

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