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Carisma versus economia

Os registros da história exibem capítulos exuberantes sobre a trajetória dos líderes carismáticos. Seus perfis, invariavelmente, pugnavam em defesa da sociedade e dos mais necessitados

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Atualizado em 4 de julho de 2008 09:18


Carisma versus economia

Gaudêncio Torquato*

Os registros da história exibem capítulos exuberantes sobre a trajetória dos líderes carismáticos. Seus perfis, invariavelmente, pugnavam em defesa da sociedade e dos mais necessitados. Pareciam mesclar a santidade com uma índole belicosa. Vejam Jesus Cristo. Mobilizava multidões. Prometia o reino dos Céus e expulsava vendilhões do Templo. Não distribuía dinheiro, mas uma vez multiplicou pães e peixes e os deu à multidão esfomeada. Contemplava estômagos famintos.

Ghandi odiava o privilégio e o monopólio e pregava: "tudo o que não pode ser dividido com as multidões é tabu".

Uma frase de John Kennedy fez sucesso: "se uma sociedade livre não pode ajudar os muito pobres, não poderão salvar os poucos ricos". Os grandes atores e as grandes expressões, que tristeza, estão nos cemitérios ou no baú da memória. Nas últimas décadas, os atores políticos com o brilho do carisma diminuíram de tamanho, no fluxo da sociedade pós-industrial, cujos limites apontam para a desumanização da autoridade, a emergência da micro-política, a dispersão das multidões, o arrefecimento das idéias e o progressivo domínio da economia sobre a política.

Essa é a explicação para a equação que Gilberto Carvalho, assessor mais próximo do presidente da República, apresentou, quando, em entrevista à revista Veja, disse que a popularidade de seu dileto amigo se deve 90% à economia e 10% ao carisma. Foi sincero. Chegou a confessar que a cúpula do governo temeu por um "impeachment" do presidente durante a crise do mensalão, menos por conta de denúncias sobre parlamentares "comprados" e mais porque a inflação beirava, naquele momento, os 6%. O argumento de Carvalho remete diretamente à hipótese: se a inflação, que chega perto dos mesmos 6% de ontem, se aproximar dos dois dígitos, em futuro próximo, vai faltar carisma no barril de Lula. Será possível?

Uma coisa é certa. Ao correr dos cinco anos e meio de governo lulo-petista, o atual momento é o que maior risco apresenta para a estabilidade econômica. Insistentes recados dados por bancos centrais do mundo aconselham países emergentes a aumentar juros e desvalorizar suas moedas para deter a onda inflacionária. Ora, este tipo de recomendação não combina com o perfil populista do nosso mandatário nem com o ambiente eleitoral que o país começa a vivenciar. Luiz Inácio, por índole, fará tudo que estiver ao alcance para atravessar, incólume, o corredor das eleições, e eleger a maior bacia de prefeitos da história brasileira. Sob aplausos, espera se apresentar como o condestável capaz de ditar os rumos do futuro e eleger o sucessor em 2010. Não será fácil ao Brasil remover obstáculos advindos do cenário internacional, mas os cofres têm reservas para queimar. Como a política deixou de ser meio para se transformar em fim, o esforço do governo estará concentrado no pleito de outubro e na devastação do que resta de oposições. O que interessa ao PT é o projeto de permanecer no poder até a batalha final e ferina entre as alas que esfacelam o partido.

Vejamos como o mestre Lula lida com as pedras no tabuleiro. Primeiro, levemos em consideração a expressão de seu assessor. A estabilidade econômica é o foco da lupa, até porque as perspectivas inflacionárias, previstas por analistas renomados, ameaçam desinflar a aprovação ao governo, em torno de 58%, e à figura pessoal de Lula, que alcança 72%, segundo o Ibope. Popularidade sempre alta faz a alegria do coração presidencial. Um corte de verba aqui, outro ali, serão suficientes para manter o equilíbrio das contas. E assim as grandes peças do jogo começam a se movimentar. A que lhe dá fama e votos, o programa Bolsa-Família, acaba de ganhar aumento de 8%, significando mais um alívio no bolso de 12 milhões de famílias e 46 milhões de brasileiros. Funcionará como contrapeso ao aumento da cesta básica em 52%, em 12 meses. E o que fazer para conter a alta dos alimentos? Ora, recursos. Estão sendo liberados R$ 78 bilhões para a safra deste ano, além R$ 12 bilhões para a agricultura familiar. Só assim a equação gilbertiana manterá os 10% do carisma lulista. Se não formos submetidos a um tsunami externo, o homem fará um gol de placa nas eleições.

Não se pode negar o diferencial de Lula em comparação com antecessores. Ele sabe mexer com a pedra mais sensível do tabuleiro social: o estômago. Veio lá de baixo, experimentou fome, passou pelos cordões da miséria. Instintivamente, maneja com os dois instintos humanos que mais incitam os indivíduos: o combativo e o alimentar. Pelo primeiro, mobiliza contingentes carentes e os incentiva a lutar pela sobrevivência; incrementa o segundo, o impulso alimentar, oferecendo meios para confortar o estômago. E, arrematando o processo de excitação dos automatismos humanos, consagra-se como Pai dos Pobres, ativando, dessa forma, o terceiro impulso, o paternal, identificado pelos valores da solidariedade, amizade, proximidade, igualdade, fraternidade. Os pobres fazem a ponte imediata: ele é um de nós. Ou seja, forja o carisma na têmpera profundamente voltada para a alma social.

Mas a política, vale lembrar, nem sempre é uma reta. Está cheia de curvas, algumas bem perigosas. Digamos que os furos nos bujões da economia estourem as melhores receitas de Meirelles e Mântega, os chefões da locomotiva econômica. Nesse caso, não haverá tampão capaz de evitar o vazamento do gás carismático de Lula. É possível, até, que mantenha intactos seus estoques em cidades de até 20 mil habitantes, que chegam a 3.950, 71% do quadro municipal. Nas grandes cidades, mesmo com índices aumentados de aprovação, após a campanha de 2006, as arestas contra o lulismo continuam. Fortes bolsões do meio social exibem grande rejeição ao ideário e métodos do PT. Esse é o jogo que espera pelo centro-avante. A jogada mais aguardada ocorrerá no desfecho da maior campanha municipal do país. Lula promete dar o empurrão final para eleger Marta Suplicy. Será um risco. Se a economia se destrambelhar, os 10% de carisma de Lula não o ajudarão a marcar o pênalti.

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*Jornalista, professor titular da USP, consultor político e autor da coluna Porandubas Políticas








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