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O caso do sargento gay

A Justiça Militar, como se sabe, tem por característica somar a toga aos sabres para a formação da vontade coletiva.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Atualizado às 11:01


O caso do sargento gay

Dirceu Augusto da Câmara Valle*

A Justiça Militar, como se sabe, tem por característica somar a toga aos sabres para a formação da vontade coletiva.

Toga no singular porque um único juiz de carreira compõe o Conselho de Justiça, enquanto quatro são os que representam os sabres, ou seja, a maioria dos julgadores do escabinato são militares, os quais, se mais preocupados com hierarquia e disciplina do que com assegurar ao réu o que de justo no sentido mais sublime da palavra, prestam um tremendo desserviço ao Poder Judiciário e ao Brasil.

E no julgamento do sargento Laci Marinho de Araújo, homossexual que foi matéria de capa de Época onde expôs sua intimidade e noticiou o relacionamento com um então colega de farda, sobreveio um resultado esperado. A juíza-auditora votou pela absolvição do graduado, vindo os juízes militares a condená-lo. Apenado, portanto, por maioria.

Se a falta de conhecimento vertical do caso concreto impede uma análise técnica, possível ao menos aproveitar o gancho e considerar que normalmente em julgamentos feitos por aqueles que fizeram das armas sua profissão, presente o risco de que o psiquismo do juiz temporário não consiga deixar de lado a ótica de superior hierárquico, não enxergando naquele que está no banco dos réus um "homem e suas circunstâncias", mas um subordinado que precisa ser exemplarmente disciplinado.

Não é de hoje que a psicologia eleva as academias militares ao status de "instituições totais", as quais "são fatais para o eu civil do internado", homogeneizando aqueles que ali estão agrupados através da "mortificação ou mutilação do eu" (Erving Goffman. Manicômios, Prisões e Conventos. 7ª ed., São Paulo: Ed. Perspectiva, 2005, p. 48/49), acarretando uma socialização às avessas, incutindo no cadete uma mudança em sua autoconcepção de forma a ostentar o comportamento desejado pela força a que pertence (Celso Castro. O Espírito Militar. 2ª ed., Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004), o que redunda em uma inflação da persona do militar que faz as vezes de juiz que não consegue desvestir seu uniforme para exercer a função judicante.

Montesquieu, em Do Espírito das Leis, externava a preocupação de que indivíduos ligados a outra esfera de poder que não o Judiciário pudessem exercer a jurisdição: "Não haverá também liberdade se o poder de julgar não estiver separado do Poder Legislativo e do Executivo. Se estivesse ligado ao Poder Legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse ligado ao Poder Executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor".

Aliás, em tempos atuais pertinente a observação de Zaffaroni e Pierangeli de que "os tribunais militares não podem ser considerados independentes, em face da dependência hierárquica que os vincula ao Poder Executivo" (Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli. Manual de Direito Penal Brasileiro, Parte Geral. 2ª ed., São Paulo: RT, 1999, p. 143), talvez daí a observação do companheiro do sargento Laci de que se os juízes de farda verde-oliva os absolvesse prejudicariam suas carreiras.

Talvez por isso mereça lembrança Émile Zola quando em defesa do capitão Dreyfus escreveu o célebre artigo "J'Accuse!", onde indagou: "A idéia superior de disciplina, que corre no sangue desses soldados, não bastaria por si só para invalidar sua capacidade de julgar imparcialmente?".

E a pergunta de Zola vale para o caso do sargento Laci e aqui a deixo no ar.

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*Advogado





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