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Previdência Social

"Equilíbrio das contas públicas depende da atuação conjunta dos Três Poderes", afirma Fux

Em palestra, ministro do STF teceu considerações acerca da Previdência Social do ponto de vista jurídico-econômico; leia íntegra de artigo.

Da Redação

quinta-feira, 21 de março de 2019

Atualizado em 29 de junho de 2020 16:53

Em palestra na FGV, o ministro Luiz Fux, do STF, analisou a Previdência Social do ponto de vista jurídico-econômico. Ao tecer suas considerações, Fux destacou que o equilíbrio das contas públicas depende da atuação conjunta dos três Poderes.

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Segundo Fux, ao Judiciário cabe garantir os direitos constitucionalmente assegurados, mas sem olvidar do esforço das instituições em imprimir equilíbrio econômico-financeiro.

"Diante de casos complexos com (i) alocação de recursos públicos escassos, (ii) vultuosos impactos econômicos a longo prazo e (iii) dificuldades técnico-estruturais para dirimir o conflito, com base na teoria dialógica e a noção de capacidade institucional, o Judiciário pode enfrentar a questão, mas, sabedor de suas limitações técnicas, criar incentivos para que os outros agentes contribuam para solucionar o caso."

Em artigo, o ministro tece suas considerações acerca do tema. Leia a íntegra do texto:

PREVIDÊNCIA, ECONOMIA E CONSTITUIÇÃO:

Uma análise jurídico-econômica da Previdência Social

                                                                                                                          Luiz Fux[1]

INTRODUÇÃO

Em linhas gerais, a Previdência Social é um sistema de seguro obrigatório em que o trabalhador brasileiro participa por meio de contribuições mensais e recebe, em contrapartida, o benefício de uma renda no momento em que ele estiver inapto para trabalhar, seja (a) pelo advento de sua aposentadoria ou (b) pelo advento de riscos econômicos como a perda de rendimentos em razão de doença, a invalidez, a maternidade ou até mesmo a morte de cônjuge, por exemplo.

No contexto brasileiro, já há algumas décadas, muito se discute a respeito da necessidade ou não de uma Reforma das regras relativas à Previdência Social expostas na Constituição. Nesse diapasão é que, em 20 de fevereiro de 2019, o Presidente Jair Bolsonaro e sua equipe econômica, chefiada pelo Ministro Paulo Guedes, entregaram proposta de Reforma da Previdência sugerindo novas regras de aposentadoria e pensão. De antemão, a despeito da relevância prático-acadêmica do tópico, devo repisar que não posso me posicionar sobre o mérito da proposta, tampouco de pontos que ela reflete. Isso, em razão de possível judicialização do tema frente ao Supremo Tribunal Federal. Nada obstante, abordarei aqui aspectos histórico, político e econômicos a respeito dos contornos constitucionais do Sistema Previdenciário brasileiro e o papel do Poder Judiciário em sua garantia e efetivação.

O equilíbrio das contas públicas depende da atuação conjunta dos 3 (três) Poderes da República. O Executivo deve (i) organizar a política previdenciária, (ii) imprimir maior eficiência à gestão da Previdência Social e, eventualmente, (iii) propor alterações legislativas necessárias para reorganizar as finanças públicas em face de projeções etárias, déficits orçamentários e etc. Por sua vez, ao Poder Legislativo incumbe a tarefa de discutir com maturidade as propostas legislativas e os projetos relativos à Previdência Social. Quanto ao Poder Judiciário, cabe a função de garantir os direitos constitucionalmente assegurados referentes à Seguridade Social, sem olvidar do esforço das instituições político-representativas em imprimir equilíbrio econômico-financeiro ao sistema como um todo.

Tendo em mente tal intuito, os atores estatais dos referidos 3 (três) poderes vivenciam um dilema: será possível encontrar um ponto de convergência entre (a) o equilíbrio econômico-financeiro da Previdência Social sem comprometer (b) o bem-estar dos cidadãos e o mandamento de justiça social? A presente exposição oral pretende abordar tal tema, sob a perspectiva do Poder Judiciário.

Para desenvolver tal reflexão, a palestra se divide em 3 (três) partes. Na primeira, exponho os contornos constitucionais da seguridade social e da previdência no âmbito da Carta de 1988. Na segunda, observo os direitos sociais previdenciários a partir da óptica da Análise Econômica do Direito (AED) de maneira a auxiliar a atuação do Poder Judiciário ao lidar com demandas desse tipo, assim, conjugando raciocínios de eficiência e de justiça na concretização de tais preceitos constitucionais. Por fim, na terceira parte, concentro-me em como o Supremo Tribunal Federal se posicionou sobre o tema previdenciário, utilizando-se implicitamente de pressupostos da AED, para solucionar o recente julgado (RE 661.256/SC) a respeito da desaposentação no âmbito do Regime Geral de Previdência Social.

I.       SEGURIDADE SOCIAL E PREVIDÊNCIA:

Uma análise histórico-constitucional

No plano mundial, o primeiro país a fixar um plano de aposentadoria foi a França, em 1673, construindo um sistema estatal exclusivo para os membros da Marinha Real, que dois séculos depois seria estendido aos funcionários públicos do país de modo geral. No Brasil, por sua vez, sistemas análogos ao previdenciário surgiram a partir de 1888 beneficiando principalmente setores que eram importantes para o império: (I) os funcionários do correio, (ii) da imprensa nacional, (iii) das estradas de ferro, (iv) da marinha, (v) da casa da moeda e (vi) da alfândega.

Nada obstante, somente em 1923 é que o Brasil passou a possuir uma Previdência Social nos moldes atuais, com o advento da Lei Eloy Chaves. Tal arcabouço legislativo levou o nome do deputado federal paulista que articulou, junto às companhias ferroviárias, a criação da base desse sistema - consolidando-a na referida lei. Em suma, tal norma estabeleceu a criação de Caixa de Aposentadoria e Pensão (CAP) para ferroviários de cada uma das empresas do ramo na época.

Durante a vigência desse sistema, o governo era responsável pela criação das CAPs e pela regulação do seu funcionamento, mas a gestão desses fundos foi delegada à iniciativa privada: elas eram administradas por uma parceria entre um conselho composto por representantes da empresa e dos empregados, que também seriam os responsáveis por financiá-las. Apesar das políticas e leis anteriores a 1923, esse marco abriu o precedente para que os benefícios fossem estendidos para outros setores através de novos sistemas - ainda priorizando os de interesse do estado - no período até 1934, como os portuários, telegráficos, servidores públicos e mineradores. No mesmo ano da criação da Lei Eloy Chaves, também teve origem o Conselho Nacional do Trabalho, que seria responsável por discutir a questão trabalhista e de previdência, desenvolvendo a proteção social no Brasil. Essa movimentação do governo aconteceu simultaneamente a de outros países - como o Reino Unido e a Itália - e só se concretizou por conta de um contexto social em que a população via o crescimento da industrialização no país, da mão de obra urbana, e as demandas sociais se tornando mais constantes.

Durante a Era Vargas, ocorreram muitas mudanças no contexto do trabalho brasileiro. Em 1930, foi criado o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, que passou a cuidar das questões relacionadas à previdência. Também foi abolido o sistema CAPs, que foi substituído pelos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs), centralizando sua atuação no governo federal e passando a funcionar em nível nacional. Nesse sistema, o Estado indicava os presidentes dos institutos, o que dava ao governo um grau de controle elevado sobre as relações de trabalho, mas a administração continuava na mão de representantes dos empregadores e empregados. A constituição de 1934 também estabelece mudanças no sistema de arrecadação implantando o custeio tríplice, onde a contribuição para os fundos de pensão era dividida entre (i) empregador, (ii) empregado, e (iii) estado. É importante notar que, apesar de uma grande acumulação de recursos durante esse regime, diversas áreas do setor público - em especial a saúde - ainda recebiam pouco retorno. Nesse sentido, a constituição de 1934 buscou alterar um pouco tal realidade mudando, para tanto, o conceito de previdência como assistência e passando a incorporar características do que conhecemos como seguro social, que então evoluiria para a Previdência Social na constituição de 1946.

Continuando na história da Previdência, em 1960, foi criada a Lei Orgânica da Previdência Social (LOPS), que tinha como objetivo uniformizar os direitos estabelecidos entre os diversos institutos criados dentro do sistema IAP. Essa mudança acontece quando a Previdência Social já tem características que beneficiam todos os empregados urbanos, embora muitos trabalhadores domésticos e rurais ainda não sejam incluídos nas políticas de proteção. A lei também incluía a garantia de benefícios como auxílio-natalidade, auxílio-funeral e auxílio-reclusão. Na década de 1960, ainda ocorreram outras mudanças no sistema de previdência, como a inclusão do trabalhador rural com o Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (FUNRURAL), em 1963, e a criação do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) - que hoje é conhecido como INSS - em 1966, para unificar a administração da previdência social no Brasil.

A criação da Constituição de 1988 estabeleceu um conjunto de ações envolvendo Saúde, Assistência e Previdência Social usando o termo "Seguridade Social". É nesse momento que se estabelece a previdência como a conhecemos hoje, mantendo seu aspecto de arrecadação entre empregadores e empregados, mas delegando ao Estado o papel de organizar e distribuir os recursos de acordo com a legislação. Atualmente, a Carta Política estabelece os parâmetros básicos para o financiamento do sistema previdenciário e o dimensionamento dos benefícios. Em apertada síntese, o sistema constitucional da Previdência se baseia em duplo fundamento: (i) contributivo e (ii) solidário.

A dimensão contributiva encontra-se prevista, de forma expressa, no art. 195, II, que determina a cobrança de contribuições previdenciárias dos trabalhadores e demais segurados do sistema. Como se sabe, o art. 195, I, prevê a cobrança também sobre os empregadores, o que não deixa de ser uma forma de captação de recursos a partir do mercado de trabalho. A menção ao aspecto contributivo é reiterada no art. 201, que enuncia as coberturas mínimas do sistema e algumas normas básicas quanto ao seu financiamento.  A segunda dimensão da seguridade em geral, e do sistema previdenciário em particular, é marcada pelo princípio da solidariedade. Em termos abrangentes, essa dimensão pode ser reconduzida ao próprio dever estatal de proteger a dignidade humana, no que se inclui a criação de uma rede social mínima que impeça as pessoas de caírem em situações de indignidade. De forma mais específica, esse aspecto pode ser extraído da previsão de que a seguridade deve ser custeada por toda a sociedade, e não apenas pelos seus beneficiários imediatos. Isso ganha conteúdo concreto com a já mencionada possibilidade de emprego de recursos dos orçamentos públicos e, sobretudo, pela autorização constitucional para a criação de outras fontes de custeio, em paralelo com as contribuições sociais.

Atualmente, no entanto, vivemos um momento de transição. O sistema vigente vem sendo rediscutido em razão do dinheiro arrecadado dos contribuintes restar insuficiente para a cobertura dos gastos com o pagamento das aposentadorias e pensões. Segundo os dados, apenas em 2018, o déficit da Previdência Social somou 290 bilhões de reais e os gastos com sua manutenção representaram aproximadamente metade (50%) das despesas da União. Para o reequilíbrio das contas públicas, como anteriormente dito, é necessário um esforço conjunto dos 3 (três) Poderes. Nesse cenário, no tocante ao Poder Judiciário, acredito que, especialmente ao decidir demandas individuais, esse terá de adotar raciocínios que combinem, de um lado, a justiça social e os direitos previstos, de outro, a eficiência econômica e o reequilíbrio das contas públicas, sendo a Análise Econômica do Direito importante aporte teórico no auxílio dos magistrados para tanto.

II.      GARANTIA DOS DIREITOS SOCIAIS PREVIDENCIÁRIOS:

2.1 Análise Econômica do Direito: breves notas

Relações sociais e econômicas representam construções culturais que, via de regra, acabam por moldar e formatar os arranjos institucionais e a disciplina legal de uma nação. No entanto, essa relação é ambivalente, apresentando notável reciprocidade. As regras jurídicas e as instituições[2] legais, igualmente, possuem papel relevante na construção e na conformação da realidade econômica.[3] Isso, por exemplo, na medida em que fornecem maior segurança jurídica e previsibilidade para as interações econômicas, consequentemente, estabilizando as expectativas dos agentes econômicos.[4]

Em razão disso, as relações entre Direito e Economia têm sido cada vez mais exploradas por acadêmicos, operadores do direito e agentes econômicos, que corriqueiramente necessitam resolver problemas complexos envolvendo (i) escassez de recursos e (ii) conflitos de interesses. Trata-se do confronto de dois parâmetros de racionalidade: justiça e eficiência. É dizer: tem-se buscado, por meio de uma análise interdisciplinar entre os campos do Direito e da Economia, alocar recursos da forma mais justa possível, a partir do auxílio de critérios e de métricas de eficiência, coordenação e estabilidade social.

Em meio a esse contexto, ganhou relevo o campo de pesquisa cunhado de Law and Economics ou Economic Analysis of Law fazendo com que juristas e economistas debatessem a respeito da medida ótima na qual os raciocínios de Teoria Econômica poderiam se aplicar à análise de regras jurídicas, de instituições e de diplomas legais.

Essa corrente teórica, a AED[5], utiliza modelos estruturais e ferramentas analíticas das Ciências Econômicas a fim de discutir, positiva ou normativamente, questões jurídicas centrais, como a formação e a quebra de contratos, o direito de propriedade, os níveis de litigância em Tribunais e até mesmo os custos sociais da criminalidade, a partir de pressupostos da Economia do Bem-Estar. Em suma, a AED representa disciplina cuja finalidade é aplicar teorias e métodos econômicos ao arcabouço jurídico de modo a otimizar a compreensão e, especialmente, a efetividade de direitos fundamentais.

Para os fins desta exposição, uma perspectiva interdisciplinar que aplique pressupostos econômicos ao fenômeno jurídico pode, em verdade, auxiliar a detectar e a solucionar problemáticas atinentes ao Direito Previdenciário. Uma análise dessa ordem pode subsidiar (i) o desenho de arranjos institucionais e (ii) de regramentos legais passíveis de gerar os incentivos "corretos" aos agentes econômicos, bem como auxiliar (iii) a atividade jurisdicional a proferir decisões com maior consciência e responsabilidade. Assim, o resultado almejado é justamente a melhoria (i) do desempenho das Finanças Públicas e (ii) da circulação e da distribuição de riquezas em geral. Como se buscará demonstrar a seguir, portanto, não se trata de contaminar, tampouco perverter o raciocínio jurídico com pressupostos econômicos, mas aplicá-los a fim de trazer efeitos positivos na gestão e na governança públicas, bem como na atividade jurisdicional.

2.2. Uma Análise Econômica dos Direitos Previdenciários: qual papel o Judiciário deve exercer?

Em linhas gerais, a relação entre a análise econômica e a previdência social, tem como ponto de partida o papel constitucional do Estado na garantia dos direitos sociais e do bem-estar da população. Demandas judiciais envolvendo a previdência social, via de regra, implicam ao Poder Judiciário a necessidade de realizar um cauteloso raciocínio. Por um lado, o juiz não pode se afastar das previsões legais e dos mandamentos constitucionais protetivos no referente (a) aos direitos adquiridos dos cidadãos no tocante à aposentadoria ou (b) às garantias de proteção ao trabalhador em situação de desemprego involuntário, por exemplo. Por outro lado, no entanto, como bem nos relembram Guido Calabresi (ex Desembargador Federal nos EUA e professor de Yale) e Phillip Bobbit (Prof da Columbia University), o Poder Judiciário não pode esquecer que está inserido em um ambiente político-econômico de recursos limitados no qual, não raras vezes, o Poder Público necessita realizar verdadeiras "escolhas trágicas" na medida em que elege como alocar tais recursos escassos.[6]

Como já bem demonstrado por Cass Sunstein e Stephen Holmes[7], a proteção a qualquer direito, seja ele de cunho individual ou social, representa custos ao Estado, prescindindo, consequentemente, de uma alocação dos escassos recursos públicos. Nesse diapasão, a discussão a respeito de direitos, especialmente os de cunho social, não está somente adstrita a um debate principiológico. Para além do reconhecimento de direitos fundamentais, conquista histórica expressada na Carta Política de 1988, hoje, vivemos em um paradigma em que, cada vez mais, juristas precisam refletir, também, a respeito de como efetivá-los. É dizer: as promessas constitucionais expressas não podem deixar de vir acompanhadas de consequências jurídicas e fáticas concretas, cogentes e eficazes, sob pena de restarem vãs e frias enquanto letras mortas no papel, mera lírica constitucional.

A imposição de previsão orçamentária prévia não deve, per si, refletir um obstáculo ao reconhecimento de um direito: direitos sociais podem e devem ser exigidos.[8] Mais do que isso, o Poder Judiciário tampouco pode legitimar o descumprimento de deveres constitucionais por parte do Poder Público, sob a eterna justificativa de falta de recursos. No entanto, o que se deve ter em mente é o fato de que decisões judiciais podem produzir consequências sistêmicas, que possuem necessária interconexão com os demais poderes e agentes interessados. Assim, em vez de efetuar mero enfretamento direto, com decisões judiciais simplórias (concedo x não concedo), é preciso repensar modelos de interferência judicial em que se distribuem os custos de decisão, criando incentivos, por exemplo, para soluções negociais, legislativas ou até mesmo para que atores com maior expertise técnica (capacidade institucional) possam colaborar na solução dos conflitos.[9]

Destarte, a Análise Econômica do Direito (AED) pode ajudar o Poder Judiciário a melhor avaliar as demandas envolvendo a garantia de tais direitos previdenciários, tendo em vista apresentar ao magistrado questões de natureza econômica intrinsecamente relacionadas à prestação desses direitos como (i) a escassez de recursos, (ii) o impacto dos incentivos judiciais na tomada de decisões pelos atores privados, (iii) as escolhas racionais maximizadoras dos cidadãos, em conjunto com seus vieses e heurísticas e assim em diante.

Utilizando-se dessa lógica, deve-se ultrapassar a visão "credor (cidadão) x devedor (Estado) " que vem orientando as intervenções judiciais sobre o tema, pois se olvidam da política previdenciária já estabelecida e do contexto global do problema.[10] Isso, porque a formulação de tal política pública envolve um plexo complexo de interações entre instituições e atores políticos a partir de um debate público amplo acerca dos problemas vigentes e das soluções possíveis. Por conseguinte, eventual intervenção judicial precisa partir de uma óptica funcional. Isto é, mensurando-se (a) o grau de utilidade, (b) os impactos sociais que ela irá promover e (c) os incentivos e os desincentivos gerados por ela aos demais atores políticos envolvidos, tudo isso a fim de se chegar a uma resolução dialógica para o problema, em prol dos cidadãos impactados.

O intuito, portanto, é o de promover decisões judiciais responsivas aos problemas presentes na realidade social sem, no entanto, "drenar recursos escassos e criar privilégios não universalizáveis"[11].

III.     A PREVIDÊNCIA E O SUPREMO:

Uma análise do caso da desaposentação

Dessa forma, cumpre, por fim, expor alguns dos principais julgados pela Suprema Corte no tocante à Previdência Social com o intuito de ilustrar a relevância do debate e como o Tribunal de cúpula da Federação tem se posicionado quanto a ela. Para tanto, selecionei caso de relevo em que o Supremo Tribunal Federal se utilizou da lógica jurídico-econômica para solucionar uma demanda judicial: a discussão relativa à desaposentação.

3.1     DESAPOSENTAÇÃO: RE 661256 (Repercussão Geral)

3.1.1. Breve Resumo:

A desaposentação é a renúncia que tem por objetivo a obtenção futura de uma aposentadoria mais vantajosa ao aposentado, pois o beneficiário abre mão dos proventos que vinha recebendo, mas não do tempo de contribuição que já teve averbado. No Brasil, o benefício da desaposentação buscava assegurar aos aposentados que continuaram trabalhando e contribuindo com a previdência social uma revisão no valor do benefício da aposentadoria. Para isso, o aposentado entrava na Justiça pedindo o cancelamento do benefício para solicitar um novo, somando ao cálculo as contribuições realizadas após a aposentadoria - aumentando assim a sua renda mensal.

Sobre o tema, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), em 2016, considerou inviável o recálculo do valor da aposentadoria por meio da chamada desaposentação. Por maioria de votos, formamos entendimento de que apenas por meio de lei seria possível fixar critérios para que os benefícios fossem recalculados com base em novas contribuições decorrentes da permanência ou volta do trabalhador ao mercado de trabalho após concessão da aposentadoria. O entendimento que prevaleceu foi do Ministro Dias Toffoli, ficando vencido o Ministro Luís Roberto Barroso, que assentava o direito à desaposentação argumentando inexistirem "fundamentos legais válidos que impeçam a renúncia a uma aposentadoria concedida pelo RGPS para o fim de requerer um novo benefício, mais vantajoso, tendo em conta contribuições obrigatórias efetuadas em razão de atividade laboral realizada após o primeiro vínculo". No entanto, "a fim de preservar a uniformidade atuarial, relacionada à isonomia e à justiça entre gerações, essa possibilidade é condicionada à exigência de que sejam levados em conta os proventos já recebidos por parte do interessado".

O voto vencedor proferido pelo, hoje Presidente, Ministro Dias Toffoli, salientou que embora não existisse vedação constitucional expressa à desaposentação, também não há previsão desse direito. Assim, fazendo leitura sistemática da Carta Política de 1988, entendeu que ela dispõe de forma clara e específica que compete à legislação ordinária estabelecer as hipóteses em que as contribuições previdenciárias repercutem diretamente no valor dos benefícios, como é o caso da desaposentação, que possibilitaria a obtenção de benefício de maior valor a partir de contribuições recolhidas após a concessão da aposentadoria.

Na ocasião, manifestei-me em sentido convergente. Data máxima vênia, no meu modo de ver, o instituto trata-se de expediente absolutamente incompatível com o desiderato do constituinte reformador que, com a edição da Emenda Constitucional 20/1998, deixou claro seu intento de incentivar a postergação das aposentadorias. Demais disso, deixei claro o fato de que a contribuição de uma pessoa serve para ajudar toda a sociedade. Assim, a obrigatoriedade visa preservar o atual sistema da seguridade e intende em reforçar a ideia de solidariedade e de moralidade pública.

A tese fixada foi a seguinte: "[n]o âmbito do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), somente lei pode criar benefícios e vantagens previdenciárias, não havendo, por ora, previsão legal do direito à 'desaposentação', sendo constitucional a regra do art. 18, § 2º, da Lei nº 8.213/91".

3.1.2. A Estrutura de Incentivos e o Supremo Tribunal Federal:

A análise da referida decisão demonstra uma aplicação, implícita, porém de sucesso, de postulados da Análise Econômica do Direito e do Pragmatismo Jurídico. Para além do necessário respeito (i) ao princípio da legalidade e do exercício de (ii) uma postura de deferência ao legislador[12], no referido caso, o Supremo Tribunal Federal acabou por adotar, também, uma "estrutura de incentivos". Em primeiro lugar, porque utilizou-se de raciocínio que levou em consideração as consequências, os impactos e, por conseguinte, os incentivos produzidos pela decisão judicial no comportamento dos cidadãos. Em segundo lugar, pois pretendeu, por meio da intervenção judicial, propagar incentivos aos outros poderes, levando em consideração sua capacidade para dirimir tal conflito e a necessidade de atuação conjunta dos poderes para o caso.

Quanto ao primeiro ponto, o consequencialismo jurídico e as proposições da AED, em especial da linha de Behavioural Law and Economics, nos ensinam que é possível criar, por meio da atuação jurisdicional, incentivos para a ação ou reação dos atores envolvidos na lide, por consequência, estimulando ou desestimulando um comportamento.[13] Nessa linha, tomando como objetivo- maior do Legislador Previdenciário o estímulo à aposentadoria tardiae, consequentemente, (i) o aumento no tempo de trabalho e de contribuição dos indivíduos e (ii) a diminuição das despesas públicas no tocante ao pagamento de benefícios previdenciários, o Supremo Tribunal Federal considerou o instituto da "desaposentação" incompatível com tal intuito, em razão de desvirtuar e de tornar imprevisíveis os parâmetros balizados pelo legislador para o alcance de tal objetivo, nomeadamente a partir do dito "fator previdenciário". Vejamos:

"Não se mostra correto afirmar que a correlação entre as remunerações auferidas durante o período laboral e o benefício concedido implicaria a inserção do regime de capitalização no sistema previdenciário brasileiro. É sabido que alguns defendem essa tese, mas, conforme estudos técnicos já realizados na análise da fórmula do fator previdenciário, conforme descrita na referida Lei nº 9.876/99, esse fator, na forma como foi instituído, representa instrumento típico do sistema de repartição, na medida em que atua na relação contribuintes/aposentados por meio de incentivos explícitos e, considerando a redistribuição de renda, implícitos.

Conforme já salientado em obra específica sobre o tema,

"(...) o fator previdenciário é um incentivo à permanência no mercado de trabalho, um prêmio àquele que contribuiu mais e por mais tempo para o sistema e fruirá dele por um lapso menor, uma homenagem e um estímulo à solidariedade, e até uma certa retribuição por ela. Entretanto, caso se admita a desaposentação, todos os parâmetros da fórmula do fator previdenciário (idade, expectativa de sobrevida e tempo de contribuição ao se aposentar) serão recalculados de acordo com o novo benefício e, dessa maneira, o novo benefício geralmente terá valor maior que o anterior, não somente em razão do acréscimo de contribuição e do transcorrer do tempo, mas também pela incidência de uma fórmula cujo objetivo é, justamente, evitar o pagamento de benefícios precoces. É dizer: admitir a desaposentação implica subverter a lógica do fator previdenciário, pois permite o incremento do benefício daquele se aposentou mais cedo, gerando ônus para o fundo sustentado por todos, e posteriormente foi favorecido pela própria passagem do tempo em que esteve em gozo do benefício" (SILVA, Elisa Maria Corrêa. Inconstitucionalidade da Desaposentação. Belo Horizonte: Fórum, 2014. p. 60. Vai nesse sentido também o entendimento de Rogério Nagamine Costanzi: Evolução e situação atual das aposentadorias por tempo de contribuição. Informe da Previdência Social. Brasília, v. 23, nº 9, out.2011).

Ademais, a desaposentação torna por demais imprevisíveis e flexíveis os parâmetros que costumam ser utilizados a título de "expectativa de sobrevida", mesmo porque passará esse elemento a ser manipulado pelo beneficiário da maneira que mais o beneficie.

O objetivo estabelecido na referida lei de estimular a aposentadoria tardia também acabará por cair por terra, a violar a finalidade das normas, pois a desaposentação vai ampliar o problema das aposentadorias precoces".

O que se teve em mente, ao julgar, foi que eventual interferência judicial autorizando a desaposentação implicaria em incentivo contrário ao objetivo estabelecido pela Política Previdenciária do Brasil. É dizer: caso autorizado, o Judiciário estaria incentivando os cidadãos a se aposentar de forma mais precoce, pois esses avaliariam prioritariamente os benefícios privados que lhe seriam concedidos (aumento de sua renda) em contraste ao ônus público trazido por tal atitude (déficit previdenciário). O que seria diametralmente oposto aos objetivos e aos incentivos preconizados pelo legislador.

Quanto ao segundo ponto, a despeito de não vislumbrar o "direito à desaposentação", o acórdão possibilitou a abertura constitucional da questão, consignando a existência de uma pluralidade de concretizações possíveis para o impasse. Vejamos:

"Havendo, no futuro, efetivas e reais razões fáticas e políticas para a revogação dessas normas, ou mesmo para a instituição e a regulamentação do instituto da desaposentação, como foi também salientado na parte final do respeitável voto do eminente Ministro Relator, o espaço democrático para esses debates há de ser respeitado, qual seja, o Congresso Nacional, onde deverão ser discutidos os impactos econômicos e sociais mencionados pelas partes e interessados não só nas sustentações orais mas também nos memorais."

Realizou-se verdadeira estratégia decisória democrática: o diálogo com os demais poderes por meio da "estrutura de incentivos". Diante de casos complexos com (i) alocação de recursos públicos escassos, (ii) vultuosos impactos econômicos a longo prazo e (iii) dificuldades técnico-estruturais para dirimir o conflito, com base na teoria dialógica e a noção de capacidade institucional, o Judiciário pode enfrentar a questão, mas, sabedor de suas limitações técnicas, criar incentivos para que os outros agentes contribuam para solucionar o caso.[14]

Foi o que ocorreu no referido julgado. O Supremo Tribunal Federal observando a existência de complexos "impactos econômicos e sociais" e de necessária expertise técnica para avalia-los, explicitou o incentivo da resolução da demanda por meio do Congresso Nacional, "convidando" o Poder Legislativo a participar do processo decisório.